Ano 2540
Um Arquiteto do futuro

O dia é domingo, o segundo de maio, dia da agência de embriogênese e controle populacional. Eu acordei cedo, mesmo sem ter dormido muito à noite passada. Havia inalado S.O.M.A para apenas três horas. Meu nome é Aldous. Sou arquiteto. Tomo um cafeinado simples com nano-estimuladores , sento na poltrona de modelagem holográfica, baixo o visor e retomo o projeto da noite anterior. Imagens tridimensionais voam num carrossel enlouquecido pelo ambiente. Bips de inconsistências estruturais soam a todo o momento. O orçamento automático, disparando alarmes, trava o projeto. Mudei os revestimentos, filtros de radiação, controle de raios UV e realinhei a malha de distribuição das tensões estruturais. Malditas normas, estão matando a criatividade.

O alarme, enfim, sossega. Uma mensagem aparece na cyber retina. É o controle de licenciamento continuado de novas edificações. O afastamento para a construção vizinha deve ser acrescido de 1 cm pela nova legislação que entrará em vigor na segunda feira. Da forma que o projeto está não será aprovado. Mais uma mensagem, dessa vez, de vídeo. É o cliente em férias num desses novos resorts de luxo localizados em Marte Terraformado.  Fala que ele e a esposa decidiram mudar tudo no projeto. Uma amiga de um amigo de um conhecido descobriu num antiquário uma imagem antiga, ainda em suporte de celulose amarelado e com a legenda: “Você nem vai lembrar que está no Ceará”. “Uma casa fantástica”, disse-me ele. Datava do século XXI de um país ou cidade, não sabia ao certo, chamado Foreign Village Fortaleza.

Segundo a amiga do amigo do conhecido, documentos anexos dão conta de que o proprietário era gente da nobreza. “Rei da Panelada” era seu título nobiliárquico, embora ninguém soubesse exatamente o que isso significava e qual era a estrutura de poder do período. Muita coisa desse século se perdeu no colapso ambiental de 2027. Ricos e nobres, certamente eram. Talvez fosse ali uma espécie de palácio de verão.  Foi amor à primeira vista. Queriam uma igualzinha. “Isso é que era estilo, classe, aristocracia, não essas modernidades que você estava tentando nos impingir”. Falou com particular emoção de uma porta de 5m de altura. “Aquilo não podia faltar”. Perguntei o porquê de uma porta de 5m para pessoas de 1.70m . “Estilo, meu caro, estilo… admira-me você, um profissional, perguntar isso”, respondeu ele. Tentei explicar que mudanças a essas alturas implicariam em aumento de créditos nos meus honorários, já que teria de refazer tudo. Ele reagiu com estudada indignação. Argumentou que já estava me dando tudo de bandeja, era só copiar. Estava facilitando meu trabalho e nem queria desconto por isso. Falou ainda que aquele projeto me abriria muitas portas, traria muitos clientes amigos dele, investidores imobiliários em Lua Nova, que eu era um arquiteto de futuro, mas me faltava marketing pessoal e que eu deveria ser mais estratégico e menos ganancioso.

Perguntei ainda onde eu colocaria coisas como a câmara de reciclagem e produção de energia, as cápsulas de rejuvenescimento e o módulo de condicionamento climático numa estrutura tão arcaica. Ele disse que não havia problema, que dentro eu fizesse o que era preciso, com todas as modernidades. O importante era “a caixa, a casca, o estilo…”. Disse também que eu não me preocupasse com o mobiliário. Sua esposa havia terminado um curso de arte e decoração antigas e que ela cuidaria dessa parte. Queria “ a caixa, a casca, o estilo”, repetiu  . Terminou dizendo que os créditos já devidos, não seriam transferidos na data acordada. Acabara de comprar um novo cruzador sub-orbital que iria daqui a New Miami em cinco minutos e estava sem créditos, mas que do mês que vem não passaria, que eu não me preocupasse e lembrou mais uma vez: “ a caixa, a casca, o estilo…”

Ainda busquei na rede neural do sistema solar alguma informação sobre esse lugar da foto. Nada. Provavelmente um desses países que sumiram no tal colapso ambiental, como aprendemos na escola. Já eram quase 20h. Lembrei que não tinha comido o dia inteiro. Parei. Programei o processador de alimentos para um digerível pastoso leve. Ainda tinha trabalho a fazer. Fiquei olhando para a imagem que ele havia enviado. Meus deuses, vou ter que fazer isso…E essa porta? Que coisa! Lembrei-me do aluguel atrasado do meu módulo habitacional, da nova poltrona de modelagem quântica que precisava comprar e do curso que teria de fazer para aprender a usá-la… “Quem não tiver uma dessas estará fora do mercado em seis meses”, disse-me o vendedor.

Engoli rápido a pasta, acrescentei alguns nano-estimulantes e prometi a mim mesmo que não passaria das três da madrugada. Amanhã tinha de acordar muito cedo. Ainda enviei holomensagens aos amigos explicando minha ausência das festas e encontros dos últimos meses. Ao fechar a câmara de sono, antes de inalar o S.O.M.A de duração programada, ainda pensei: Caramba, essa profissão tem mudado demais ultimamente… 

MURATORI, Ricardo. Ano 2540 . Projeto Batente, Fortaleza - CE, 28 de junho de 2021. Arquitetura. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/ano-2540>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Ricardo Muratori
Arquiteto e Urbanista
Terminei a graduação em 1984. Desde então exerço quase que somente atividade liberal com algumas experiências didáticas como professor substituto e convidado na UFC. Meu interesse maior é pelo desenho da edificação. Por herança de meus mestres carrego o modernismo como norte. Penso que entender de arquitetura é entender da vida. Talvez por isso seja tão difícil praticá-la.

Ricardo Muratori

Terminei a graduação em 1984. Desde então exerço quase que somente atividade liberal com algumas experiências didáticas como professor substituto e convidado na UFC. Meu interesse maior é pelo desenho da edificação. Por herança de meus mestres carrego o modernismo como norte. Penso que entender de arquitetura é entender da vida. Talvez por isso seja tão difícil praticá-la.

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