O maior espetáculo das cidades são as pessoas¹
A política de transportes do município têm seguido na contramão do conceito de humanização da paisagem urbana

O tema da mobilidade urbana vem sendo objeto de plataformas político-eleitorais há pelo menos 30 anos. Basicamente os temas abordados restringem-se às graves questões do fluxo motorizado de pessoas e mercadorias fomentadas pelo inchaço das regiões metropolitanas; 80% da população brasileira reside atualmente nos grandes centros urbanos. Entretanto um aspecto muito pouco discutido da mobilidade urbana vem ganhando destaque nos últimos anos. Trata-se do conceito de caminhabilidade.

Recentíssimo estudo, para avaliar o índice de caminhabilidade de 27 capitais brasileiras, revelou que nenhuma das capitais conseguiu perfazer a média de 8 (oito) pontos (mínimo aceitável) numa escala de 0 a 10. Fortaleza ocupou vergonhoso 26º lugar com 4,53 pontos só perdendo para Belém com 4,52. 

O baixo índice de caminhabilidade de nossa cidade reflete-se no desestímulo à sua ocupação. Wilde Cardoso Gontijo Júnior², integrante da organização Andar a Pé, lista uma série de benefícios proporcionados pela prática sistemática de caminhadas. Dentre estes, o combate ao sedentarismo, um dos principais fatores de doenças cardio-vasculares. Segundo Gontijo, as caminhadas também impactam na desoneração do transporte coletivo, proporcionam a humanização do espaço urbano, reduzem a poluição e potencializam a atividade comercial local ao possibilitar maior contingente de pessoas circulando nas ruas.

Não seria exagero afirmar que a cidade (enquanto ente administrativo) devota sua razão de existir no deslocamento motorizado. O Brasil, mesmo sem o apelo material do “grande irmão”, adotou o modal de deslocamento rodoviarista individual como sistema de translado de pessoas e mercadorias. A política de transportes do município têm seguido na contramão do conceito de humanização da paisagem urbana verificado em alguns países da Europa, da Ásia e da Oceania. A despeito dos incrementos de modal cicloviário, o alargamento de vias, a abertura de túneis e viadutos como solução para os gargalos de fluxo tem se mostrado ineficaz enquanto política de mobilidade urbana. Basta um aumento em 10% na quilometragem de vias para induzir em 4% o aumento de quilometragem rodada (SPEACK, 2017). Em outros termos, a oferta de novas vias não reduz o fluxo, antes aumenta-o na proporção mencionada atingindo – em pouco anos – 10% de quilometragem rodada da nova capacidade viária, ou seja, congestionando-a. 

O urbanista e planejador estadunidense apontou em seu “Cidade Caminhável” as quatro condições para que uma cidade se torne atrativa ao uso peatonal. A caminhada precisa ser Proveitosa, ou seja, ela deve atender as demandas cotidianas do usuário. A farmácia, o mercadinho, a padaria, a escola primária, a pracinha tem que estar ao alcance de uma caminhada. Ela (a caminhada) precisa ser Segura. E aqui estamos obviamente falando de segurança de trânsito. O pedestre precisa sentir-se seguro contra as chances reais de acidentes de trânsito. Para ser atrativa a caminhada deve ainda ser Confortável tanto no aspecto contemplativo quanto no aspecto fisiológico. Edifícios e paisagens – em contraste com os imensos espaços abertos – devem funcionar como “salas de estar a céu aberto” (aspas do autor). Por último, os passeios devem ser Interessantes no sentido de possibilitar amplas trocas sociais. É sobre fachadas ativas e outros usos urbanos que Speck (2017) está se referindo.

Um longo percurso, portanto deve ser enfrentado para que Fortaleza possa figurar pelo menos entre os melhores exemplos brasileiros de caminhabilidade. 

Primeiro é preciso que as faculdades de arquitetura abordem mais o conceito, ainda relativamente desprezado (ou subestimado) pelo meio acadêmico.  De resto, só mesmo o despertar de uma consciência “litúrgica” da cidadania será capaz de impactar as decisões da esfera pública, esta sempre enredada pelas prioridades do capital.

REFERÊNCIAS

SPEACK, Jeff Cidade Caminhável Tradução de Anita Di Marco, Anita Natividade. – I reimp. da I ed. – São Paulo Perspectiva, 2017

VIEIRA, Anderson Estudo comprova situação ruim das calçadas das capitais brasileiras. Brasília, 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/12/06/estudo-comprova-situacao-ruim-de-calcadas-das-capitais-brasileiras. Acesso em: 16/02/2020

ARAÚJO, Ana Luísa; OLIVEIRA, Nelson Território sem dono, calçadas brasileiras revelam negligência com o pedestre. Brasília, 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/territorio-sem-dono-calcadas-brasileiras-revelam-negligencia-com-o-pedestre. Acesso em: 17/02/2020

¹citação do arquiteto Jan Ghel.

²Fonte extraída de site do Senado Federal.

Como Citar essa Matéria
BANDEIRA, Brennand. O maior espetáculo das cidades são as pessoas. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 5 de março de 2020. Arquitetura e Urbanismo. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/o-maior-espetaculo-das-cidades-sao-as-pessoas/>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Brennand Bandeira
Arquiteto e Urbanista
Antes de tudo sou um apaixonado pelos temas da cidade e dos processos urbanos. Graduado em arquitetura e urbanismo pela UFC (1995) com mestrado em Psicologia pela mesma instituição (2012). Professor Unifor (2013 - 2017) e UNI7 desde 2015. Com áreas de atuação em projeto, design de interiores, design gráfico, habitação social, conforto ambiental e APO. Contista e articulista colaborador do jornal APraça, maior e mais longevo periódico da região centro-sul do estado, de 2001 a 2006.

Brennand Bandeira

Antes de tudo sou um apaixonado pelos temas da cidade e dos processos urbanos. Graduado em arquitetura e urbanismo pela UFC (1995) com mestrado em Psicologia pela mesma instituição (2012). Professor Unifor (2013 - 2017) e UNI7 desde 2015. Com áreas de atuação em projeto, design de interiores, design gráfico, habitação social, conforto ambiental e APO. Contista e articulista colaborador do jornal APraça, maior e mais longevo periódico da região centro-sul do estado, de 2001 a 2006.

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