Paisagem urbana como um reflexo de hábitos culturais O impacto dos varais de Xangai na estética e paisagem da cidade.
Ainda me lembro de um dos meus primeiros passeios a pé por Shanghai, com minha família. Nós andávamos em uma calçada de uma área nobre repleta de varais de roupas (preciso especificar, porque aqui não existem só varais de roupas, mas também de carnes, peixes, animais exóticos e por aí vai…). Mas para uma recém-chegada na China, ainda bem que nesse dia só vimos roupas estendidas! Passamos por diversos varais tentando encontrar alguma peça com uma etiqueta de preço ou até olhávamos a propriedade em frente, certos de que encontraríamos um brechó ou bazar responsável por expor aquelas peças. Aquilo não fazia sentido. Não tinha preço… Não tinha loja em frente. Quem vendia aquelas roupas? E como poderiam vender roupas íntimas tão gastas?! Mal sabia eu que já eram os hábitos culturais chineses nos dando as boas-vindas, através da paisagem urbana.
Paisagem, segundo a Convenção Europeia da Paisagem (2005), é parte do território, tal como é apreendido pelas populações, cujo carácter resulta da ação e da interação de fatores naturais e/ou humanos. Os varais são um exemplo de fator humano, que, com intuito basicamente funcional, o de secar roupas e carnes, modificam a paisagem urbana, gerando poluição visual na cidade. Em Shanghai e qualquer outra cidade da China, é difícil andar alguns quilômetros e não se deparar com varais. Eles estão por toda parte, é uma cena que se repete em cada canto das cidades desvalorizando a paisagem urbana. Meias, calcinhas, cuecas, linguiças, peixes, carne de pato, pano de chão… “tudo junto e misturado”. Na porta de casa ou do comércio, nas calçadas, em um fiozinho entre duas árvores, nos postes e fios elétricos, nos portões, grades e guarda-corpos, na copa das árvores, e ainda em grandes estruturas fixadas nas fachadas dos edifícios. Das áreas menos nobres às áreas mais nobres da cidade, em sua maioria, não há, por parte dos residentes, o cuidado com a preservação estética do espaço urbano.
Um hábito cultural muito tradicional, cultivado de gerações em gerações, que dia após dia, foram se apropriando do espaço público, o incorporando e o tratando como extensão da sua própria casa. Motivado inicialmente pelo espaço limitado dentro de casa junto ao pensamento de aproveitar a utilidade do sol para matar os germes e secar mais rápido, esse hábito foi sendo construído ao longo do tempo, modificando e transformando a paisagem das cidades em detrimento da funcionalidade.
Ainda nos dias atuais, mesmo com a modernidade que as cidades atingiram e em realidades que espaço não é problema, a cultura prevalece, mesmo que afetando a qualidade da paisagem e estética urbana. Paisagem esta que considero intrigante e repleta de contradições, uma vez que os varais se encontram muitas vezes em meio a ruas e calçadas cuja limpeza e paisagismo são impecáveis. Sendo assim, me pergunto: Quais são os critérios da paisagem urbana considerados pela gestão municipal? Como eles definem a qualidade dessa paisagem? E por último, porque não implementar instrumentos de gestão que regulem a paisagem urbana, no que diz respeito aos varais?
Uma coisa é certa: a cultura tradicional dos varais super inusitados da vida cotidiana da população chinesa se sobressai perante a qualidade da paisagem. E assim, resta-nos aceitar a desordem visual (que nem deve ser percebida por eles) e apreciar a forma como os hábitos culturais chineses estão fortemente ligados à sua paisagem e produzem um grande reflexo na estética das cidades, que por sua vez, refletem a história sobre aquele espaço e as pessoas que o ocuparam no passado e o ocupam no presente. Sendo assim, a paisagem é também uma das formas de contar a sua história e exaltar a cultura dessa comunidade.
Referências
(Convenção Europeia da Paisagem, D.L. nº 4/2005)
Como Citar essa Matéria
ESMERALDO, Lara. Paisagem urbana como um reflexo de hábitos culturais. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 4 de fevereiro de 2021. Urbanismo. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/paisagem-urbana-como-um-reflexo-de-habitos-culturais>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
