Uberização do Estágio na Arquitetura Como o regime de home office pode causar a precarização do trabalho nos estágios em arquitetura.
Vez ou outra, aparecem por aí ofertas de estágio voluntário para estudantes de arquitetura. Isso não é de hoje, e certamente não é um problema em si. As novas circunstâncias de trabalho, surgidas a partir do início da pandemia do covid-19, transformaram a rotina dos escritórios de arquitetura, e o trabalho remoto rapidamente se estabeleceu como uma solução capaz de responder às limitações do momento. Dentro dessa nova realidade, surgiram inúmeros anúncios de estágios de arquitetura não remunerados em regime de home office, e isso traz à tona algumas questões importantes.
Todo estudante de arquitetura precisa de estágio em algum momento do curso, seja por questões burocráticas e curriculares, seja pelo aprendizado e o entendimento da prática profissional, ou até mesmo por uma necessidade financeira. O aluno se torna refém do primeiro estágio, já que sem ele não se forma e nem é chamado para trabalhar em escritórios que exigem experiência prévia.
A baixa oferta de estágios e o crescente número de instituições de ensino superior na área, é um prato cheio para que os escritórios de arquitetura possam selecionar estagiários mais capacitados oferecendo cada vez menos contrapartidas, com o simples argumento de não exigir experiência, apesar de cobrar conhecimento prévio em uma série de softwares e muitos outros quesitos.
Muitas vezes, essas vagas são oferecidas sem um programa de aprendizado definido para o estagiário e sem ajuda de custo para transporte e alimentação, ou algum tipo de possibilidade de “promoção” ao estágio remunerado. Esse fato por si só já é bastante preocupante, e se agrava quando o estagiário tem que investir, além do seu tempo, seu dinheiro no escritório.
Trabalhar em casa pode ser muito conveniente para alguns, mas é importante lembrar que, além de um espaço adequado, essa configuração envolve custos de energia e exige equipamentos específicos. Custos estes que alguns estudantes, ou seus responsáveis, podem arcar, enquanto outros possíveis candidatos não têm acesso a uma boa internet para uma reunião ou um computador que rode os softwares utilizados pelo escritório. A partir daí, percebe-se quão confortável é para uma empresa “contratar” estagiários não remunerados, ainda mais em regime remoto, eliminando assim a necessidade de investimento em equipamentos e manutenção, reduzindo a conta de energia e a atenção dispensada ao estagiário, ficando sob o domínio do arquiteto definir os momentos mais propícios para sanar eventuais dúvidas e marcar reuniões, por exemplo.
Algumas dúvidas com relação ao aproveitamento desses estagiários surgem: como será o aprendizado desse aluno? Como ele irá entender as dinâmicas do escritório? Essa situação não provocaria uma alienação do trabalho desses estagiários, que ao invés de se dedicarem a atividades que estimulem o conhecimento, passariam vários dias detalhando banheiros ou fazendo renders fotorrealistas?
Muitas profissões caminham para a tal precarização do trabalho, a tão falada “uberização”, onde, neste caso, o estagiário é proprietário dos meios de produção, bancando sua energia, seus equipamentos e se responsabilizando por uma eventual manutenção destes. Não é mera semelhança o que acontece com um entregador de aplicativo, que se responsabiliza pela compra e manutenção de todas as suas ferramentas de trabalho.
Esse quadro geral reforça a desigualdade de oportunidades, já que se todos os estudantes de arquitetura tivessem de se submeter a um primeiro estágio não remunerado, aqueles em condições financeiras desfavoráveis não teriam como bancar a ida ao escritório todo dia ou dispor de equipamento e infraestrutura suficiente para trabalhar em casa. O escritório que antes buscava um estagiário voluntário com inglês fluente, perfil pró-ativo e domínio de uma série de softwares (o que já era um contrassenso), agora também exige uma estação de trabalho com um computador compatível, programas instalados e acesso a uma internet de banda larga estável. Em contrapartida, o escritório oferece cada vez menos segurança e aprendizado ao estagiário, já que, muito provavelmente, a prática necessária ao crescimento profissional desse estudante será bastante prejudicada ou nem existirá.
É importante entendermos que políticas públicas que garantiram acesso amplo ao ensino superior através de cotas e financiamentos, visando combater as disparidades sociais do país, colocaram dentro das faculdades públicas e particulares alunos de classes sociais antes não contempladas por essas instituições. A prática de estágio voluntário, principalmente remoto, sem contrapartidas claras, pode ser mais uma entre as várias barreiras criadas entre esses estudantes e o mercado de trabalho.
Ajuda de custo, programa de aprendizado e apoio ao estagiário, fornecimento das ferramentas de trabalho e participação nos lucros, são apenas algumas das muitas alternativas que podem garantir melhores condições de trabalho aos estagiários. Estudantes de arquitetura necessitam de uma aproximação real com a prática dos escritórios, e esses têm muito a ganhar com a participação efetiva dos estagiários em todos os seus processos internos, permitindo que o frescor da academia oxigene as práticas viciadas do mercado de arquitetura.
Essa relação pode e deve acontecer de uma forma mais justa e menos unilateral, para não cair na lógica que é tão recriminada por nós profissionais. Assim como a prática de estupro mental dentro das escolas de arquitetura vem sendo passada de geração a geração, essa prática exploratória também tende a ser perpetuada. Os estudantes explorados nos estágios voluntários vão explorar outras pessoas quando se tornarem arquitetos e assim as coisas vão seguindo como estão. Ou piorando.
Como Citar essa Matéria
SOARES JR., Mário. Uberização do Estágio na Arquitetura. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 29 de junho de 2020. Educação. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/uberizacao-do-estagio-na-arquitetura>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Ótima leitura. Hoje, só o que vemos é a exploração de estagiários e a perturbação dele como indivíduo por conta de estresse e pressão psicológica feita nele em vários aspectos, sejam prazos, financeira ou excesso de tarefas. Fiscalizações dessa prática não se ver e ainda que as próprias faculdades particulares te forçam a fazer cadeiras caríssimas de estágio, onde você “paga para trabalhar”. O estagiário precisando ser aprovado na cadeira, aceita um estágio não remunerado, tem que arcar com custos além da cadeira. Acredito que seja um tema ótimo para ser melhor explorado. Parabéns ao Batente e ao posicionamento do Mário S.