A insuspeitável beleza da Manoel Dias Branco O impacto visual da praça nada convidativa, mas facilmente perceptível.
É uma dessas obras que servem à máquina mais que ao destino dos caminhantes.
A praça rotatória foi construída sobre a confluência dos riachos Aguanambi e Porangabussu. Dacolá, ambos contribuem com suas águas escuras para o talvegue do São João do Tauape, aquela baixada que todos conhecem por Lagamar; braço fétido que deságua no Rio Cocó.
De fora a Praça Manoel Dias Branco nada tem de convidativa, entretanto o harmonioso equilíbrio entre a pavimentação de concreto e os jardins recobertos por grama é facilmente perceptível por quem espera o semáforo.
Não conheci a imagem viva do patriarca da família Dias Branco. Pela silhueta pouco natural que o representa é provável que o escultor não lhe tenha feito a justa homenagem. O tórax um tanto quanto prismático reluz ao sol da tarde enquanto o braço direito – teso – acena desapercebido pelos motoristas que viajam pro sul. O conjunto todo repousa sobre a base de uma fonte desativada. Ainda que jorrasse águas dançantes a mesma estaria em situação desfavorável com o entorno imediato. O impacto visual dos riachos que ali se misturam (escancaradamente apodrecidos) denunciam não só a redundância, como a desonestidade da fonte.
A recente reforma da Aguanambi melhorou consideravelmente o acesso ao sítio. Conhecendo o proverbial descaso brasileiro para escalar passarelas urbanas, ainda que estas lhes valham a conservação da vida, diria que o passadiço metálico que acessa a Praça Manoel Dias Branco continua virgem desde sua última demão de tinta.
A despeito das minhas expectativas, o novo viaduto que liga a Aguanambi à BR 116 deu à praça uma composição inusitada. Antes, a hostilidade própria dos espaços de passagem a isolava severamente. A monumentalidade do elevado acabou por oferecer-lhe uma espécie de abrigo, um elemento de referência no complexo jogo da sintaxe urbana… Mais ainda, a reforma revelou o exato ponto de confluência (antes ocultado) dos riachos acima mencionados.
Duas ou três vezes por semana pedalo o interior da rotatória e, com o olhar de dentro, identifico seus costumeiros usuários. A mulher que todas as tardes deixa quilos de sobejos para a “gataiada” faminta que de lá não arreda patas. O pescador que desce o paredão de concreto do pútrido canal e lança sua malha na esperança de capturar o jantar do dia ou, quem sabe, o tira-gosto da noite. As alvíssimas e longilíneas garças que contrastam com as águas lodosas e disputam o parco alimento com o pescador… e Raimundo, um vigia desempregado amante da leitura. Já o flagrara em vários locais da rotatória degustando textos por cima de textos. Faço questão de passar com a bicicleta por perto para saber o que lê. Ora folheia as notícias de jornais dormidos, ora concentra-se sobre informes igualmente puídos de velhos semanários. Noutro dia percebi que absorvia uma obra relativamente volumosa. Seria a Bíblia? Não me contendo dei meia volta na bicicleta. Parei.
“Boa tarde! Tudo bem? Sempre que passo o senhor está lendo.”
“Tenho muita curiosidade”, respondeu.
Meio sem jeito, perguntei qual era sua atividade, como se chamava e por fim que livro tinha em mãos. Versava sobre os segredos da maçonaria, revelou-me.
Pedi-lhe o contato para uma eventual indicação de emprego. Nosso condomínio já houvera contratado porteiro aficionado por leitura; por motivos óbvios a experiência revelou-se desastrosa.
Perdi o celular. Com essa justificativa, Raimundo praticamente encerrou o assunto.
Econômico com as palavras, o vigia estava diante de um sujeito que nunca vira mais gordo e obstinado em atrapalhar seu momento de devaneio. Justo naquele local contraditoriamente ermo, mas talvez o único capaz de lhe garantir o fugaz suspiro da liberdade.
Como Citar essa Matéria
BANDEIRA, Brennand. A insuspeitável beleza da Manoel Dias Branco. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 02 de setembro de 2020. Resenha. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/tijolo-por-tijolo/>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]