Arquitetura, semideuses e easter eggs
A encomenda sem os easter eggs não é arquitetura.

Minha geração de arquitetos foi formada sob o peso quase insuportável do modernismo. Mais que isso, sob a sombra gigantesca de deuses como Mies, Gropius, Corbusier e outros tantos. Como alguém me disse uma vez, falando de outra coisa, mas que era essa mesma coisa: “Se achavam mais que deuses, se achavam semideuses”.

Não foi fácil, para um bando de moleques educados em frente à tv valvulada de um único canal, escolher uma profissão de gigantes que haviam, há pouco mais de meio século, redesenhado o mundo. Ou, pelo menos, foi o que nos disseram. Acabamos acreditando por um tempo que a missão redentora da humanidade através da arquitetura estava agora em nossas mãos, ainda sujas de manga e seriguela apanhadas no fundo do quintal. Até hoje padecemos dessa presunção, haja vista a enorme quantidade de textos e lives de arquitetos dizendo como vai ser o mundo depois da pandemia. 

A relação de um semideus com um mortal, também chamado de cliente, achávamos que era totalmente assimétrica. O que aprendemos foi que o mortal deveria esforçar-se ao máximo para compreender a joia que estávamos colocando em suas mãos, além de pagar por ela, claro, e atrapalhar o mínimo possível. Essa impressão não resistiu ao primeiro embate profissional com a alma alencarina, muito mais profissional que a nossa, temperada na farinha, na rapadura e na aritmética de bodega.

Aprendemos no sopapo que fundamentalmente recebemos encomendas, sendo  do histórico e da natureza das encomendas serem entregues segundo as demandas do “encomendador”. Então era isso? Nós, os herdeiros dos semideuses, somos apenas um empacotador de demandas e pronto? O que diria Mies se nos visse agora? Durante um tempo, remoemos a culpa de macular a memória das semidivindades amesquinhando uma profissão de titãs que, àquela altura, deveriam estar prestes a lançar raios em nossa cabeça, agora baixa e envergonhada. Aí é que entra o ovo ou o easter egg.

Fomos entendendo depois que num projeto cabe o mundo, inclusive o nosso “infinito particular”. A encomenda, é certo, deverá ser entregue com as demandas atendidas. Vão junto, de forma quase secreta, não explícita, os portais para outras dimensões, mais largas e profundas do que as solicitadas. Alguns clientes saberão lê-las, outros vão gostar delas como se gosta do que não se compreende e ,no entanto, vão perceber um não sei o que indizível. Vão experimentar uma sensação de contentamento para além do rol de requisitos contratados. E é assim que agimos, fornecendo pistas de segredos a serem encontrados ou simplesmente intuídos e experimentados.

Uma paisagem recortada na janela, um vento que passa, uma luz que entra, uma sombra sublinhando uma parede, uma referência ao passado, um comentário sobre o futuro e um fluido de humanidade que se espalha sobre o concreto, o ferro, o vidro, a madeira… Percebemos quando eles os encontram, pelo sorriso, pela surpresa e quase nunca pelo que falam, mas a gente sabe que eles encontraram o que deixamos sob o tapete da encomenda. É visível. “Ficou bom isso aqui”, dizem. O “isso aqui” resume o segredo, o invisível absoluto presente em tudo que se olha. Feito isso, vamos embora. O sorriso secreto sinaliza a reconciliação com os semideuses. A encomenda sem os easter eggs não é arquitetura, é encomenda apenas, mas sem ela não haveria onde esconder constelações.

Como Citar essa Matéria
MURATORI, Ricardo. Arquitetura, semideuses e easter eggs. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 25 de maio de 2020. Resenha. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/o-que-esperar-de-um-projeto>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Ricardo Muratori
Arquiteto e Urbanista
Terminei a graduação em 1984. Desde então exerço quase que somente atividade liberal com algumas experiências didáticas como professor substituto e convidado na UFC. Meu interesse maior é pelo desenho da edificação. Por herança de meus mestres carrego o modernismo como norte. Penso que entender de arquitetura é entender da vida. Talvez por isso seja tão difícil praticá-la.

Ricardo Muratori

Terminei a graduação em 1984. Desde então exerço quase que somente atividade liberal com algumas experiências didáticas como professor substituto e convidado na UFC. Meu interesse maior é pelo desenho da edificação. Por herança de meus mestres carrego o modernismo como norte. Penso que entender de arquitetura é entender da vida. Talvez por isso seja tão difícil praticá-la.

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