Galeria de fracassos
Precisamos dos fracassos tanto quanto dos êxitos

Arquitetos possuem um enorme acervo de “fracassos”. Projetos não realizados, estudos, ideias, tudo sepultado numa montanha de papeis ou bytes. As arquiteturas são uma crônica. Algo que descreve um tempo em um lugar entre pessoas. Um período ou época pode ser lido e descrito através da arquitetura do que foi construído, do que foi demolido, mas também através daquilo que nem chegou a ser edificado. A história pode também ser contada pelo desejo, pelo que se quis fazer, pelo que não se fez. É possível dizer muito de um lugar, de sua arquitetura e das pessoas desse lugar, seguindo a trilha do “não foi”. Pode se dizer muito de um arquiteto visitando sua galeria de fracassos.

“Acabou a verba. Mudou o governo. Projeto de outra administração. Nosso foco agora é outro. Elegemos novas prioridades. Procuramos um profissional com outro perfil.”
Os motivos são variados, mas a consequência é a mesma: Não vai ser feito.

Confesso que visitando minha própria galeria respiro aliviado por alguns dos meus fracassos. Graças a Deus. Seria insuportável conviver com eles, sobretudo os da juventude. Acho que o Divino estendeu sua proteção ao jovem arquiteto que fui como faz aos bêbados. Apesar disso, eu os coleciono como quem guarda num vidrinho as pedras extraídas de um rim.

Os fracassos mais comuns acontecem quando ignoramos a geografia. Os deuses da arquitetura irritam-se particularmente com esses. A geografia com seus ventos, seus sóis, seus solos, suas latitudes, suas chuvas, temperaturas e marés definem muito de um projeto. Não só na arquitetura. Imagine se Vivaldi, extraordinário compositor barroco de Veneza, tivesse nascido em Itapipoca. Jamais teria composto “As Quatro Estações”. Teria no máximo escrito “As Duas Estações”, inverno e verão, consequência da geografia do lugar, e o mundo estaria privado da “Primavera”, sem dúvida o mais belo concerto dentre os quatro. A geografia não é tudo, mas é quase.

O fato é que essa biografia torta constrói o arquiteto que somos. Sem ela seriamos menos. Precisamos dos fracassos tanto quanto dos êxitos. Pode-se compor a biografia de um arquiteto como quem vê negativos de fotos, se ainda existissem negativos de fotos. O que quis, o que desejou, o que sonhou e, por algum capricho das coisas, não aconteceu.

Uma vez vasculhei minha árvore genealógica e encontrei outro Muratori, arquiteto que pertencia ao Futurismo Italiano, movimento europeu do inicio do século passado. Fiquei interessado. Descobri que ele tirou a própria vida, amargurado por nunca ter visto um único projeto seu edificado. Ai também, não! É muito. Uma dose de projetos não edificados, no entanto, é importante. Podemos falar deles com orgulho, com constrangimento, com humor, de forma mais crítica, de forma mais sentimental, podemos mentir sobre eles, fantasiar sua história e acreditar nela. Podemos falar deles como falamos de nós. E como gostamos de falar de nós!

Há também aquele grupo que escolhe não fazer, cujo lema é: “Eu faria melhor se por acaso fizesse”. Como nunca fazem, são sempre melhores. É um sistema também.

Imagino realizar um dia uma exposição de trabalhos não edificados feitos por todos nós. Projetos que mereceriam ter sido construídos e outros em que a divina providência atuou impedindo sua feitura. Seriam explicitadas também as razões para cada uma dessas histórias, possibilitando uma reflexão sobre as condições alencarinas postas para o exercício de nossa profissão.

E então? Como anda a sua galeria de fracassos? Fazendo sucesso?

Como Citar essa Matéria
MURATORI, Ricardo. Galeria de fracassos. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 30 de março de 2020. Resenha. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/galeria-de-fracassos>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Ricardo Muratori
Arquiteto e Urbanista
Terminei a graduação em 1984. Desde então exerço quase que somente atividade liberal com algumas experiências didáticas como professor substituto e convidado na UFC. Meu interesse maior é pelo desenho da edificação. Por herança de meus mestres carrego o modernismo como norte. Penso que entender de arquitetura é entender da vida. Talvez por isso seja tão difícil praticá-la.

Ricardo Muratori

Terminei a graduação em 1984. Desde então exerço quase que somente atividade liberal com algumas experiências didáticas como professor substituto e convidado na UFC. Meu interesse maior é pelo desenho da edificação. Por herança de meus mestres carrego o modernismo como norte. Penso que entender de arquitetura é entender da vida. Talvez por isso seja tão difícil praticá-la.

One thought on “Galeria de fracassos

  • 20/05/2020 em 10:20 pm
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    Como sempre uma bela crônica desse finíssimo escritor

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