Ma: A Plenitude do Vazio
Ser ou não ser, eis a questão: você já deve ter ouvido em algum momento da sua vida, a célebre frase dita por Hamlet na peça de Shakespeare. Essa citação é um interessante exemplo da dualidade ontológica enraizada na nossa cultura ocidental, que se baseia num princípio de não contradição; tudo no mundo admite apenas duas possibilidades – ser ou não ser; verdadeiro ou falso; interno ou externo. Esse pensamento omite, portanto, qualquer coisa situada no intermédio entre dois conceitos opostos – aquilo que é e, simultaneamente, não é. Mas, contrariando essa maneira de pensar, a palavra japonesa Ma nos faz despertar para uma outra forma de compreender o mundo.
O Ma se refere ao espaço intermediário, ao entre-espaço – desenvolve-se no universo do contraditório, daquilo que é “simultaneamente um e outro” ou “nem um, nem outro”. O conceito é originado na cultura japonesa a partir da ideia de um espaço vazio, delimitado por quatro pilastras, no qual poderia haver a aparição do transcendental, do divino. É, portanto, originado de uma ideia de possibilidade que pode, no fim, concretizar-se ou não. Consiste no reino da ambivalência, em que o vazio não é sinônimo de “nada”, mas é visto como algo em que potencialmente tudo acontece. O vazio é a disponibilidade para o nascimento, e os cheios e vazios – tal como no princípio chinês do “yin-yang” – reforçam-se e complementam-se, num processo de troca e mobilidade contínua.
Esse pensamento japonês cria uma estética particular que privilegia a ausência, o intervalo – por exemplo, o espaço branco de um desenho, o silêncio de uma música, a pausa no movimento de uma dança, o espaço intermediário entre interno-externo. O Ma também pode ser entendido como a associação entre espaço e tempo, caracterizando-os como duas faces de uma mesma moeda. A vivência do espaço, nesse sentido, é sempre compreendida a partir de uma perspectiva temporal – como podemos observar na espacialidade de um santuário xintoísta, em que é privilegiado o caminho de aproximação entre o território profano e o divino.
Conseguimos perceber, a partir do que foi dito, que o Ma possui uma profunda relação com o espaço vivenciado, e sua expressão é nitidamente visualizada na arquitetura japonesa. Percebemos esse pensamento no vazio de uma simples sala tradicional de tatami, em que a ausência de móveis fixos concebe uma multiplicidade de usos possíveis para o espaço, de acordo com a interação que o homem estabelece com o ambiente.
Esse conceito também está presente na espacialidade intervalar de uma varanda da casa tradicional japonesa, denominada engawa. Ali, confundem-se jardim e construção, interno e externo. Ali, os vizinhos batem papo num domingo de manhã, crianças brincam numa tarde de sol e a vovó tricota cachecóis numa noite de outono. No intermédio, na conjugação entre dois mundos distintos, tudo se faz possível.
Mas os exemplos desse conceito não se fazem presentes apenas na arquitetura tradicional do Japão. Encontramos esses mesmos conceitos de flexibilidade e intervalo espacial no vão do Museu de Arte de São Paulo, da nossa ilustre Lina Bo Bardi, ou ainda na marquise do Parque Ibirapuera, do memorável Oscar Niemeyer. Quem passeia por esses locais num domingo à tarde consegue sentir a profusão de atividades possibilitadas por esses vazios: manobras de skate, feirinhas de artesanato, barraquinhas de comidas, apresentações artísticas, e por aí vai…
O espaço do Ma, portanto, não é compreendido apenas do ponto de vista físico, mas, sobretudo, é construído a partir da interação entre o homem e o ambiente. São as ações do indivíduo que preenchem a incompletude da arquitetura, que é vista como fruto de um fluxo constante de diálogos e interações, de vivências e (im)permanências. E, a partir daí, o vazio é visto como uma abordagem possível a caminho da plenitude.
Como Citar essa Matéria
CASTRO, Mariana. Ma: A Plenitude do Vazio. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 5 de abril de 2019. Resenha. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/ma-a-plenitude-do-vazio>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]