A sociedade em construção será feminista ou não será

Brasil, março de 2021. São três anos do assassinato de Marielle Franco. A ex-vereadora encontrou enorme resistência ao seu trabalho, pois a função histórica e estruturalmente definida para uma mulher negra é servir, não ao povo, mas a um senhor. A dominação da mulher persiste na sociedade, sendo necessário, no sul global, ressaltar as questões raciais: como pode haver uma democracia plena se temas como gênero são tratados como relativos à esfera privada e questões de raça sem reparação de uma dívida histórica? Como esperar uma sociedade que crie rupturas na hierarquia entre homens e mulheres, entre brancos e negros, com a sub-representação desses grupos nas arenas de poder? (BIROLI, 2018)¹. 

“Nas eleições de 2018, 4.398 mulheres negras se candidataram a cargos legislativos. Um aumento de 93% de candidaturas autodeclaradas negras em comparação a eleição anterior.” 

Documentário Sementes do Poder

O percentual de cadeiras ocupadas por pretos na Câmara de Deputados corresponde a apenas 3% do total da casa e apenas três deputadas são mulheres negras². O que esperar de “instituições que, a despeito de suas pretensões democráticas e igualitárias, naturalizam e reproduzem assimetrias e relações de dominação”? (MIGUEL, 2014). Essa representatividade ínfima advém da divisão sexual e racial do trabalho, que detém a mulher no âmbito doméstico e aprisiona negros e negras na escassez.

Os primórdios do capitalismo trouxeram mudanças estruturais para o gerenciamento dos corpos femininos: a nova divisão sexual do trabalho subentende a dependência e inferioridade da mulher ao renegá-la trabalho assalariado, restando-lhe o papel maquinal de gestar novos trabalhadores (FEDERICI, 2017). Não se pode tratar como mera coincidência a sincronia entre a caça às bruxas e o surgimento do capitalismo mercantilista. A dominação da entidade ‘mulher’, ou o ‘segundo sexo – aquele que não é o primeiro’, foi e ainda é base da estruturação do capital (FEDERICI, 2017).

Apesar das sementes que florescem na luta diária e se inspiram no legado de Marielle, ainda temos muito a caminhar. Com a pandemia de COVID-19, o horror escancara-se diante de nós. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no Ceará, entre maio e abril de 2020, o número de feminicídios cresceu 64,9% em comparação a 2019³. A morte do corpo é a última etapa do percurso de opressões, que englobam violência doméstica, sejam físicas ou psicológicas, além de extrema sobrecarga e exploração de corpos femininos. O tempo semanal dedicado por mulheres ao trabalho doméstico no Brasil é 150% maior que o tempo dedicado pelos homens⁴. Elas trabalham 7,5 horas a mais devido à dupla jornada⁵. Nesse sentido, a reprodução social do cuidado, amplamente destinada às mulheres, ganha expressividade na quarentena e no isolamento social.

Na arena político-social, mulheres não ocupam lugares de poder. Consequentemente, a cidade não é feita para elas. Segundo Protágoras, o homem é a medida de todas as coisas. O filósofo se referia a uma ideia de humanidade, porém esse parece ser o real parâmetro de gênero das cidades atuais. Desde mobiliário urbano, passando pela altura das barras de segurança nos ônibus, a cidade é pensada para o famigerado homem médio. Fachadas cegas intermináveis e iluminação pública precária fazem do percurso feminino uma arriscada travessia. 

Nesse contexto, para além do papel essencial dos movimentos sociais nas cidades, tem-se como produtores da materialidade do espaço urbano: os proprietários dos meios de produção, os proprietários da terra, os agentes imobiliários e de construção e o Estado (CUSTÓDIO apud CORRÊA, 1989). As mulheres, percentualmente, não fazem parte desses grupos sociais. Homens brancos ocupam o topo da pirâmide social, com renda média três vezes maior que a de mulheres negras, em que cerca de 69% das famílias chefiadas por mulheres possuem renda inferior a um salário mínimo. 

Angela Davis definiu Marielle como um farol de esperança. Apesar de toda a desigualdade de gênero, raça e classe, existem mulheres pobres, negras, trans, latinas, indígenas, dentre outras, travando lutas diárias contra um sistema que não se importa com suas vidas. Em termos simbólicos, ideológicos e concretos, urge a construção de uma sociedade outra, a qual não passará por reais transformações sem a atuação feminista.

Que esse farol ilumine o caminho de todas nós.

Referências Bibliográficas

¹Fonte: Artigo “Divisão Sexual do Trabalho, Gênero e Democracia” de Flávia Biroli em “Introdução ao pensamento feminista negro: por um feminismo para os 99%”. Boitempo. 2021.

² Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/02/08/com-apenas-3-de-deputados-pretos-camara-tem-1-negra-na-mesa-diretora.htm

³ Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-06/casos-de-feminicidio-crescem-22-em-12-estados-durante-pandemia

⁴ Fonte: IPEA. Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. 2011.

⁵Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-03/mulheres-trabalham-75-horas-mais-que-homens-devido-dupla-jornada

CUSTÓDIO, Vanderli. Agentes produtores do Espaço Urbano e dos Sistemas de Espaços Livres: uma metodologia. 1989.

FREDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa. Editora Elefante. 2017.

MIGUEL, Luis Felipe. BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. Boitempo. 2014.

Como Citar essa Matéria
CARCARÁ ASSESORIA. A sociedade em construção será feminista ou não será . Projeto Batente, Fortaleza - CE, 26 de março de 2021. Arquitetura. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/a-sociedade-em-construcao-sera-feminista-ou-nao-sera>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Carcará Assessoria
Assessoria Técnico-Informacional
O Carcará é um grupo auto-organizado – composto por quatro profissionais nos campos da arquitetura, urbanismo e design – atuante na prática de assessoria técnico-informacional em territórios periféricos da cidade de Fortaleza.Os trabalhos iniciais foram desenvolvidos em 2018, enquanto coletivo de estudantes de graduação, promovendo oficinas, cartografias afetivas, rodas de conversas e, inclusive, da eleição do conselho gestor da ZEIS Praia do Futuro. O objetivo centrava-se na temática das transformações em espaços periféricos frente à especulação imobiliária, aliado à demanda imprescindível do acesso à moradia digna por todos. Atualmente, tem como meta fortalecer a luta pelo direito à cidade por meio da universalização da produção teórico-prática de arquitetura, urbanismo e design, especialmente aprofundando a prática de assessoria técnico-informacional, debates públicos e design ativista.

Carcará Assessoria

O Carcará é um grupo auto-organizado – composto por quatro profissionais nos campos da arquitetura, urbanismo e design – atuante na prática de assessoria técnico-informacional em territórios periféricos da cidade de Fortaleza.Os trabalhos iniciais foram desenvolvidos em 2018, enquanto coletivo de estudantes de graduação, promovendo oficinas, cartografias afetivas, rodas de conversas e, inclusive, da eleição do conselho gestor da ZEIS Praia do Futuro. O objetivo centrava-se na temática das transformações em espaços periféricos frente à especulação imobiliária, aliado à demanda imprescindível do acesso à moradia digna por todos. Atualmente, tem como meta fortalecer a luta pelo direito à cidade por meio da universalização da produção teórico-prática de arquitetura, urbanismo e design, especialmente aprofundando a prática de assessoria técnico-informacional, debates públicos e design ativista.

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