Uma palavra para o Boteco Bar… outra para Memória.

Que tolice! A prefeitura não tem como impedir o livre mercado! Não há como coibir o proprietário de exercer o mais sagrado direito do capitalismo, falam os liberais. A cidade é dinâmica! Não se pode engessá-la, defenderão  muitos arquitetos, inclusive.

O que fala mais alto, entretanto, é a incapacidade da gestão pública (algumas mais que outras) de assumir o espaço público como lócus da cidadania por excelência. No caso em questão – um elegante bangalô –  o imóvel encontrava-se não só em perfeito estado, como cumpria plenamente sua função social e, pasme, o fazia através da atividade considerada carro chefe da vocação econômica do bairro. Sim, o Boteco Bar, até ontem abrigado naquela charmosa construção de esquina pro aterrão do Ideal, era possivelmente um dos ambientes mais frequentados pela turistada da baixa e da alta estação (e renda). No lugar do oco deixado aguarda-se o soerguimento de mais um espigão. “O sítio, na hoje valorizadíssima Praia de Iracema, é livre de qualquer barreira à oeste.  Dotado, de um vista deslumbrante que fará a delícia exclusiva dos afortunados adquirentes.” Eis aí o briefing para agência publicitária.

Em nome do bem comum o poder público não só pode como deve impedir intervenções urbanas potencialmente danosas às relações sócio-espaciais, especialmente aquelas que atentem contra o amplo direito à cidade incluindo aí a memória dos lugares. 

A maquete eletrônica divulgada em rede social mostra que o trecho terminal da Rui Barbosa que hoje acessa o início da Av. Beira-Mar será incorporado a uma praça. Pela imagem vê-se que a praça é o portal de acesso ao edifício. Repete-se, portanto, a lógica já batida dos centros comerciais com acesso pontual e fachadas cegas. O gabarito do “brinquedo” monta em mais de 30 pavimentos… Um edifício de uso misto com estas características não costuma transigir com o entorno, pelo menos é o que temos visto nos exemplos de Fortaleza.  Para completar, o acesso motorizado fatalmente se dará pela ultra-movimentada Historiador Raimundo Girão; único eixo de ligação leste-oeste deste setor norte da cidade. 

Se podemos botar essa crítica na conta de experiências anteriores para antecipar um diagnóstico negativo? Eu digo que Sim. Dificilmente uma proposta desse tipo surpreende-nos. 

Por outro lado, incomoda-nos profundamente o histórico descaso com a Memória do patrimônio construído nesta Lourinha Desmiolada do Sol (obrigado Pedro Salgueiro). 

Quando falamos de Memória nos referimos ao repositório de experiências pregressas com pessoas e lugares que “jazem” em nosso subconsciente. A memória é responsável pelo registro dessas relações que nos situam no tempo e no espaço. Portanto ela é fundamental para definir nossa posição no mundo.  

Políticas de preservação contribuem para manutenção destes processos identitários retroalimentando nossa estima pelos espaços preservados da cidade. É dessa relação consciente (ou inconsciente) que mantemos com espaços reconhecidamente dotados de valor histórico e afetivo que se estruturam os vínculos simbólicos/afetivos capazes de nos manter implicados com o destino das cidades. 

Por outro lado, a política do bota-abaixo alinhada com interesses pseudo-progressitas (leia-se especulativos) contribuem para o sentimento de indiferença tão comum ao habitante dos grandes centros. Destruídos os laços que mantém viva a Memória, a percepção de cidade como construção coletiva e espaço das práticas cidadãs  acaba cedendo para o sentimento de apropriação individualista. Prevalece a ideia de que da minha porta pra fora nada me diz respeito.

Diversamente quando nos sentimos implicados com a cidade, percebemos que determinada ambiência carregada de memórias sócio-históricas pertence a uma coletividade da qual fazemos (ou um dia fizemos) parte, ainda que não tenhamos necessariamente tomado aquele chope na aprazível varanda do Boteco Bar ou desfrutado o memorável quintal da vovó Jereissati.

Como Citar essa Matéria
BANDEIRA, Brennand. Uma palavra para o Boteco Bar… outra para Memória. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 23 de março de 2021. Arquitetura. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/uma-palavra-para-o-boteco-bar-outra-para-memoria>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Brennand Bandeira
Arquiteto e Urbanista
Antes de tudo sou um apaixonado pelos temas da cidade e dos processos urbanos. Graduado em arquitetura e urbanismo pela UFC (1995) com mestrado em Psicologia pela mesma instituição (2012). Professor Unifor (2013 - 2017) e UNI7 desde 2015. Com áreas de atuação em projeto, design de interiores, design gráfico, habitação social, conforto ambiental e APO. Contista e articulista colaborador do jornal APraça, maior e mais longevo periódico da região centro-sul do estado, de 2001 a 2006.

Brennand Bandeira

Antes de tudo sou um apaixonado pelos temas da cidade e dos processos urbanos. Graduado em arquitetura e urbanismo pela UFC (1995) com mestrado em Psicologia pela mesma instituição (2012). Professor Unifor (2013 - 2017) e UNI7 desde 2015. Com áreas de atuação em projeto, design de interiores, design gráfico, habitação social, conforto ambiental e APO. Contista e articulista colaborador do jornal APraça, maior e mais longevo periódico da região centro-sul do estado, de 2001 a 2006.

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