Arquitetura, as coisas, os submarinos e o Laboratório de Dexter
Tudo que consumimos vira projeto, desenho, desejo.

Quando recebi o convite para participar da elaboração desses textos, perguntei sobre o que deveria escrever. “Sobre o que você quiser”, foi a amável resposta. Como arquitetura está mais ou menos ali entre terceiro ou quarto lugar na lista dos meus interesses, logo pensei em falar sobre Beatles, que é, de longe, o assunto que mais domino. Pensei também em abordar ficção científica, gênero literário e de cinema que mais gosto. Depois achei que seria meio estranho e me fixei mesmo nos assuntos da profissão. 

Percebo, no entanto, que se falasse das coisas que gosto, dos livros, dos filmes, das músicas, das viagens, das pessoas, dos amores, dos rancores, estaria também falando de arquitetura. As coisas são a arquitetura. Cuidar da biografia intelectual é cuidar da qualidade de nossa produção. É necessário vigiar nosso consumo material e espiritual porque essa é a matéria prima da arquitetura que produzimos. Isso não deve ser confundido exclusivamente com erudição. 

Coloco nesse balaio todo tipo de informação: Dostoievski, quadrinhos, séries, Dali, Picasso, Mies, Fernando Pessoa, Batman, Óvnis. Não é o que se consome, é como. Um curso de arquitetura é isso: um lugar de aprender um jeito novo de ver coisas velhas. Lembro da minha primeira aula de perspectiva cônica, quando aprendi a fazer três dimensões em duas. Naquele dia, voltando pra casa, temi que minha mãe não me reconhecesse. Eu era outra pessoa e foi só uma das aulas. 

Dali pra frente, foi psicodélico. Viajei e não voltei mais. Estou doidão até hoje. Enxergamos auras, “vibrations”, contornos, luzes, Foo Fighters.  Ninguém vê o que vemos, a não ser alguns cachorros. Isso é nossa glória e nossa desgraça. Não é fácil ser um zumbi e fingir que não é. Uma certa solidão é necessária. É possível, mas é difícil compartilhar delírios e, sem delírio, não tem arquitetura, embora a arquitetura não seja feita só de delírios. 

Por isso é tão importante o que consumimos intelectualmente, materialmente, e até como enchemos o bucho. Tudo vira projeto, desenho, desejo. Acho que somos assim meio como os submarinos. Navegamos uns metros abaixo da superfície. O periscópio sempre acima da linha d’água girando 360º e o radar ligado. Temos em nós um laboratório de Dexter. Juntamos coisas, desenhamos coisas, misturamos tudo e, de repente, uma invenção. Então, presta atenção! Dependendo de sua resposta, isso pode virar um projeto: Que música você está ouvindo agora?

Como Citar essa Matéria
MURATORI, Ricardo. Arquitetura, as coisas, os submarinos e o Laboratório de Dexter. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 27 de julho de 2020. Resenha. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/arquitetura-as-coisas-os-submarinos-e-o-laboratorio-de-dexter>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Ricardo Muratori
Arquiteto e Urbanista
Terminei a graduação em 1984. Desde então exerço quase que somente atividade liberal com algumas experiências didáticas como professor substituto e convidado na UFC. Meu interesse maior é pelo desenho da edificação. Por herança de meus mestres carrego o modernismo como norte. Penso que entender de arquitetura é entender da vida. Talvez por isso seja tão difícil praticá-la.

Ricardo Muratori

Terminei a graduação em 1984. Desde então exerço quase que somente atividade liberal com algumas experiências didáticas como professor substituto e convidado na UFC. Meu interesse maior é pelo desenho da edificação. Por herança de meus mestres carrego o modernismo como norte. Penso que entender de arquitetura é entender da vida. Talvez por isso seja tão difícil praticá-la.

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