Do sertão à favela Concentração da pobreza urbana em Fortaleza
No romance O Quinze, a escritora Rachel de Queiroz narra a história de uma grande seca que atinge o sertão do Ceará no início do século XX. Ela descreve os chamados campos de concentração da seca. Embora não fossem campos de extermínio, como os que seriam criados na Alemanha de Hitler, esses “campos” que se espalharam pelas zonas urbanas do Ceará no início do século XX, tinham um objetivo que se pode considerar nazista. Eles visavam concentrar a população indesejada, que tentava sobreviver à seca do sertão fugindo para as cidades, e, sobretudo, para a capital, mantendo-a no interior do espaço urbano, mas isolada do restante da população, em uma espécie paradoxal de “exclusão interna”.
Desde a seca de 1915, a história das políticas de planejamento urbano de Fortaleza mostra práticas de espacialização, concentração, isolamento e segregação de contingentes populacionais considerados indesejáveis (“práticas biopolíticas”), que foram institucionalizadas de maneira semelhante à descrita por Raquel de Queiroz. Ao longo do século XX, porém, essas práticas não foram dirigidas apenas aos retirantes da seca, mas tiveram como alvo os pobres de maneira geral. Na cidade de Fortaleza, na maioria dos casos, a segregação dos pobres é feita de forma velada, notadamente quando os planos urbanos do Estado simplesmente omitem áreas da cidade que são do interesse da população pobre. Ora, não se pode dizer que essas “omissões” sejam o mero resultado da ignorância ou do esquecimento dos técnicos e urbanistas encarregados dos planos urbanos de Fortaleza. Omitir áreas urbanas de interesse dos pobres é uma maneira implícita, mas bastante racional e estratégica, de ocultar também a população que vive nelas.
Uma vez ocultas as áreas tidas como problemáticas, a pobreza se torna invisível. É como se as favelas não existissem, uma vez que elas não se encontram nos mapas nem, por conseguinte, nos planos urbanos. A análise da pobreza urbana parece pressupor uma estranha ontologia do “não ser” da favela. Com os territórios da pobreza ocultados por meio desse artifício ideológico que consiste em omitir tais territórios nos mapas urbanos, o problema da pobreza pode aparecer como resolvido, tanto no discurso oficial quanto no discurso das ciências urbanas. Todavia, de fato, a pobreza continua a ser uma fratura exposta em alguma parte do corpo de uma cidade que ignora a si mesma de maneira proposital e deliberada.
Como Citar essa Matéria
TARAMELA. Do sertão à favela. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 9 de setembro de 2019. Resenha. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/do-sertao-a-favela/>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
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