Crônica de uma morte anunciada: residência Benedito Macedo
Como a valorização de bens patrimoniais pode gerar lucro

No livro “Crônica de uma morte anunciada”, o escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez revela logo na primeira linha o desfecho da história: o personagem principal, Santiago Nasar, vai morrer. Todos os personagens sabiam o que ocorreria, mas nenhum foi capaz de evitar o assassinato. 

No último mês, as redes sociais repercutiram o início da demolição da Residência Benedito Macedo. Obra do arquiteto Acácio Gil Borsói e Janete Costa, com jardins do paisagista Burle Marx. Foram muitos os posts e stories carregados de surpresa, decepção, tristeza, revolta, lamentos… Compreensíveis, porém a destruição imóvel era algo absolutamente previsível. A questão era “quando” iria ocorrer.

A demolição foi embargada por falta de alvará para sua realização e uma reunião apressada do órgão estadual de patrimônio acabou por tombar provisoriamente o imóvel, numa forçada tentativa de “salvá-lo”. Um balde d’água. Suficiente para conter o foco inicial, mas não para impedir o incêndio. Mais cedo ou mais tarde o processo de demolição será retomado e no lugar da casa surgirá um novíssimo empreendimento de alto padrão, em sintonia com o que há de mais chique e glamoroso em outra latitudes…

A propósito de outras latitudes, em Roma, o empresário Diego Della Valle – presidente do grupo de sapatos de luxo TOD’s – investiu 25 milhões de euros na restauração do Coliseu. O curioso é que o grupo TOD’s renunciou a colocar seu nome nos andaimes que cobriram o monumento durante os trabalhos de restauro bem como o logotipo da marca nos bilhetes de entrada ao Coliseu. Questionado sobre o porquê dessa política de zero publicidade nesse projeto ele responde:

“Queria dar uma mensagem dentro e fora da Itália […] Para que os italianos se envolvam com coisas importantes. Queremos dizer ao resto de empresários italianos, grandes e pequenos, que é o momento que nós façamos algo por nosso país.”

https://www.elmundo.es/cultura/2016/07/01/5776be94468aeb914e8b4686.html
Diego Della Valle – presidente do grupo de sapatos de luxo TOD’s.

Mas o que tem a ver Garcia Marquez, uma marca de sapatos de luxo e a residência Benedito de Macedo? Por uma parte que a demolição do imóvel parece algo claramente irreversível, portanto – como no livro de Gabo – já sabemos o final da história. Por outro lado, essa história poderia ter um outro desenlace se houvesse em nossa cidade um ecossistema social adequado para que isso ocorresse. 

Della Valle não é nenhum um santo, é um empresário e quer lucro. Mas ele parece perceber que algumas coisas, entre elas a cultura do seu lugar, são importantes. Ele sabe que o retorno para sua marca com o fortalecimento da “Marca Itália” é enorme, por isso investe em cultura. Guardadas as devidas proporções (a residência Benedito Macedo não é certamente o Coliseu) é possível tirar algumas lições dessa história:

  1. é preciso acabar com essa disputa maniqueísta que opõe as “pessoas de bem” que desejam salvar o patrimônio e os demônios do mercado que só querem lucro a qualquer custo. Por que não ser parceiros? 
  2. é possível obter lucro (e muito) com a exploração de bens patrimoniais precisamente por esse seu caráter de obras singulares. 
  3. A educação é fundamental. Sem ela, qualquer esforço de preservação pelo método “goela abaixo” será contraprodutivo. É preciso construir uma cultura arquitetônica e uma cultura patrimonial que nos leve a perceber que valorizar o patrimônio tem a ver com responsabilidade social. Hoje em dia derrubar uma árvore é motivo de comoção e preocupação pelas pessoas e empresas, mas um edifício antigo… quem se importa? Melhor se esbaldar como pinto no lixo pelos boxes do Centro Fashion, alheio à sua arquitetura, do que censurá-lo por ter sido construído sobre os escombros intencionais de uma das fábricas mais importantes do patrimônio industrial de nosso estado.

Mudança de mentalidade é um processo que leva tempo e o patrimônio arquitetônico precisa “para ontem” entrar na dinâmica do desenvolvimento sustentável das cidades, das certificações, dos selos de qualidade das empresas. Enquanto permanecer restrito ao âmbito de arquitetos saudosistas e dos grupos cult-bacaninhas seguiremos com nossas crónicas de outras mortes já anunciadas.

Como Citar essa Matéria
PINTO, Jober. Crônica de uma morte anunciada: residência Benedito Macedo. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 1 de julho de 2020. Arquitetura. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/cronica-de-uma-morte-anunciada-residencia-benedito-macedo/>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Jober Pinto
Arquiteto e Urbanista
Pai da Carolina. Doutor em Arquitetura pela Escuela Ténica Superior de Arquitectura (ETSAM) da Universidad Politecnica de Madrid. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Ceará. Foi Coordenador de Patrimônio Histórico e Cultural da Secretaria da Cultura de Fortaleza, Ceará. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Projeto Arquitetônico, Patrimônio Cultural e Teoria e Historia da Arquitetura. É membro do International Council on Monuments and Sites (ICOMOS).

Jober Pinto

Pai da Carolina. Doutor em Arquitetura pela Escuela Ténica Superior de Arquitectura (ETSAM) da Universidad Politecnica de Madrid. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Ceará. Foi Coordenador de Patrimônio Histórico e Cultural da Secretaria da Cultura de Fortaleza, Ceará. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Projeto Arquitetônico, Patrimônio Cultural e Teoria e Historia da Arquitetura. É membro do International Council on Monuments and Sites (ICOMOS).

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