Direito Autoral: de Autores e Autoridades na Arquitetura
Notas sobre ser “dono” das idéias

Tratar de direitos autorais é sempre uma tarefa complexa. Não é pelo tema em si, pois é bem sabido que basta seguir os ditames de lei para se andar na linha aceitável dos limites sociais. No entanto, são muitos os caminhos, antecedentes e derivados a respeito da autoria ou do autor, ou seja, alguém que se apresenta como sendo o proprietário de uma idéia ou objeto. Esse fato, ou melhor, esse vínculo é matéria antiga. Dentre outras abordagens, tem a ver com autenticidade.

Um sujeito que é autêntico assume seus atos e pensamentos. Pois que assim o faça, para o bem e para o mal. É por aí que chegamos à legalidade do direito, com seus bônus e seus ônus. Ocorre também que o direito legitima a propriedade, no caso, a intelectual. Então temos já uma dicotomia entre autenticidade e legitimidade. São aspectos que nem sempre andam juntos, vide o caso da rede McDonald´s, estampado com toda a sua crueza no filme Fome de Poder em que trata de um surrupio legal de um processo comercial e do nome de família que denomina o empreendimento de inegável sucesso mundial, mas que simplesmente marginalizou miseravelmente os donos originais do negócio. Uma ação antiética no universo das relações interpessoais, mas bem sucedida no mundo dos negócios. A ética, assim, seria o fiel dessa balança, a depender do ponto de vista de quem a enxerga. A consciência ética é individual, apesar da sua percepção ser coletiva.

A autenticidade vai se estabelecer com um sentido de posse, originalidade e pertencimento da criação. Quanto a isso percebemos até uma relação próxima com a origem das marcas. Desde tempos longínquos, a ação de acrescentar um sinal gráfico em um produto distinguiria uma peça de outra similar. Nesse sentido há várias razões que justificariam a ação: uma identificação de origem, a justificativa de um valor de troca, apoiada em um maior apuro na confecção, o uso de um material mais resistente, maior domínio na técnica produtiva, mais durabilidade e até a famosa, e não menos antiga, inovação. Esse simples ato teria como consequências uma maior procura por esse ou aquele produto, com um valor intrínseco agregado à peça, com reconhecimento de credibilidade, e ainda, evitaria a confusão com produtos similares de baixa qualidade ou simplesmente imitações. Assim, essa é uma questão identitária e com viés comercial, que ocorre da manufatura individual até os complexos sistemas industriais contemporâneos. Daí surgem os critérios de escolha e perguntas tipo “a marca é boa? ah, então o produto é bom, vale a pena levar, pague o preço”, que gera, inclusive, fidelidade, e por vezes, incondicional, nem sempre resultado da qualidade, mas de uma adequada e estratégica exposição e publicidade da marca/autor/propriedade desse ou daquele produto.

Essa relação vai ocorrer de forma mais evidente para nós arquitetos e seres criadores, com a personalização resultante de um exacerbado humanismo renascentista. É quando surge, ganha status e consolida-se a imagem do autor, figura e persona, que vai possibilitar uma espiral de negócios. É quando ele pode se desumanizar e se transformar em uma grife, com todos os seus luxuosos vernizes e perder a pessoalidade. Inicia-se de fato com o reconhecimento absoluto do “eu” em detrimento, por exemplo, do trabalho coletivo das conhecidas corporações de ofício medievais. Ao autor é dado o reconhecimento máximo de personalidade e de distinção social, recebe admiração e ganha status social com todas as suas mazelas consequentes, que vão de narcisismos e controvérsias da própria criação. São famosos os casos de verdadeiras fagocitoses de talentos nas oficinas dos grandes mestres, ou mesmo de problemas com as encomendas. Nesse caso é quando o sentido da arte deixa de ter apenas o componente intuitivo, espontâneo para ter que superar o caminho inverso, caracterizado pela intenção de um outro externo ao autor, do prazo, da exigência do resultado e do crivo do chamado cliente. São situações que foram expostas sob a carga dramática em filmes como Camille Claudel (França, 1988), a aprendiz talentosa e suas relações passionais com o mestre Rodin e a saga do pintor flamengo Johannes Vermeer, em Moça Com Brinco de Pérola (Inglaterra, 2003), um artista do século XVII atormentado entre a guarda obsessiva do segredo da confecção de suas tintas em seu ateliê e as obrigações com suas encomendas versus um bloqueio de inspiração, forçado pelos negócios e pela necessidade de sobrevivência.

Esse problema da atuação criativa não nos aflige como a Vermeer, pois que trata de nossa própria condição profissional projetiva, que apenas existe em função das solicitações dos clientes, ou seja, dependemos irreversivelmente das encomendas de trabalho. A partir daí, entende-se que cada projeto ou ato criativo é específico, ímpar e exclusivo. Esse conceito nos tange direto a uma ação criadora, que determina uma atitude de ineditismo permanente. No entanto, ainda carregamos todas essas questões aqui citadas da autenticidade, da legitimidade, do ofuscamento narcísico da notoriedade, passando pelas imposições profissionais e éticas de responsabilidade técnica, do atendimento aos condicionantes sócio-econômicos-ambientais e legais, do risco do plágio involuntário e ainda mais, da incessante busca pela aceitação dos resultados, pelos elogios e pela satisfação pessoal…ai, ai, ai, que dureza essa cruz da autoria.

As questões a respeito do tema são tantas que se fez necessária a ordenação jurídica para definir limites e condicionantes, além dos devidos conceitos e significados terminológicos para organizar toda a complexidade que a sociedade capitalista atingiu relacionada, principalmente, à propriedade privada. A legislação tem um amplo espectro que vai da propriedade intelectual individual ao comércio internacional, nas inúmeras instâncias de controle e registro. As civilizações ancestrais já apontavam com um certo cuidado com a questão autoral. Além das ciências, artes, política e comunicação foram determinantes para o pensamento ocidental com relação ao Direito. Já tentavam proteger a autoria e inibir possíveis usurpadores das criações, os já conhecidos plagiadores. Assim havia uma questão que já se colocava, que é a de proteção do autor, do ponto de vista do seu reconhecimento público. Ao mesmo tempo, preservava-se também um meio de obtenção de renda visto que o comércio percebia e distinguia que valor e produto estavam em consonância na preferência de seus clientes. Esse contexto altera-se bruscamente com a invenção da prensa de Johannes Gutemberg em meados do século XV em pleno Renascimento. Com a possibilidade da reprodução em massa de peças e escritos ocorreu também o risco de obtenção de vantagens econômicas por quem detivesse o modo de produção revolucionário à época. Lembrem que os livros anteriormente eram escritos e ilustrados manualmente, com enorme perícia, porém com dificuldade de materiais e lentidão. Com a nova tecnologia a Europa foi infestada rapidamente por redações, editoras e gráficas que poderiam a qualquer tempo e hora copiar conteúdos à margem da autorização e conhecimento de seus criadores, fato que ameaçava profundamente a propriedade intelectual. Surgiu assim uma preocupação sistemática com os direitos autorais. Até que em 1710 vai surgir o Copyright Act na Inglaterra, que mais protegia os editores do que os próprios autores. Já havia então uma discrepância que valorizava mais a produção do que a autoria. Apenas décadas depois é que com o advento da Revolução Francesa foi aprovado um decreto que garantia a detenção pelo autor da propriedade sobre a sua criação e, logo após, os direitos de reprodução exclusiva. Com a adoção pelos novos Estados nacionais de leis próprias houve uma convergência mundial consagrada pela Convenção de Berna em 1886 com a assinatura de um acordo multilateral para sistematizar tratativas de proteção autoral extra-fronteiras. A tecnologia reinventava os processos de produção e reprodução e tornava o mundo menor, o alcance dos ideais se ampliava, tendo como consequências um maior reconhecimento, porém com mais riscos de vantagens indevidas à revelia dos autores. Outros documentos de referência quanto ao tema são a Convenção Universal dos Direitos do Autor (1952) e a Convenção de Roma (1961).

O Brasil tornou-se signatário em 1922 da Convenção de Berna, que teve sua última atualização em 1971. Em 1998 é sancionada a Lei Federal 9610 que trata dos direitos autorais. Foi um avanço pela amplitude da legislação e porque pelo seu conteúdo objetivo e abrangente ainda está em vigor. Até hoje, serve como referência para normas e regras específicas em grupos profissionais distintos. Destaco alguns artigos que tratam da Arquitetura, tais como o 7º. , inciso X que insere projetos, esboços e obras plásticas concernentes à arquitetura como produtos intelectuais protegidos. No artigo 26º. permite que o autor do projeto possa repudiar a sua criação arquitetônica, desde que seja alterada sem o seu consentimento, seja durante a obra ou após a sua conclusão. Importante esses posicionamentos legais, pois sabemos que na Arquitetura ocorre um histórico debate dicotômico sobre sua própria natureza entre a arte e a técnica, a forma e a função. Vale ressaltar que houve momentos em que o processo de intensa industrialização no início do século XX colocou em oposição a autoria intelectual artística do projeto e o registro de processo construtivo, um produto tecnológico. A autoria projetual é individual, fruto da capacidade intelectual da pessoa física, e pode ter uso permitido a uma empresa, na sua pessoa jurídica. No entanto, não há transmissão de autoria ou a sua alienação.

Do ponto de vista da prática profissional dos profissionais de Arquitetura e Urbanismo no país a legislação federal aborda o assunto no art. 17 de Lei 5194 de 1966, que regula o exercício da profissão de arquitetos e engenheiros, onde cita que “os direitos de autoria de um plano ou projeto de engenharia, arquitetura ou agronomia, respeitadas as relações contratuais expressas entre o autor e outros interessados, são do profissional que os elaborar.” Na época o exercício profissional era fiscalizado pelo sistema CREA-CONFEA, que contemplava os arquitetos, engenheiros e agrônomos. Com o desmembramento ocorrido em 2010 e o advento do CAU – Conselho de Arquitetura e Urbanismo, a questão autoral foi tratada já pela Lei 12.378 que criou a autarquia federal. O tema da autoria já é citado no art.14º. quando expõe o dever do profissional indicar através de mídia publicitária, placa ou outro meio de comunicação o(s) autor(es) de um projeto arquitetônico ou qualquer outra atividade descrita como habilitada. Essa atitude também está relacionada à responsabilidade social contida na autoria. O autor, responsável por qualquer criação, deve ter competência profissional habilitada pela sua formação acadêmica e certificada pelo Conselho, cuja obrigação é o controle e a fiscalização do exercício da profissão no país. Assim relaciona-se a autoria arquitetônica com o bom resultado da criação intelectual, o que diferencia a Arquitetura de outras artes puramente intuitivas. Já os arts. 15º e 16º tratam da co-autoria e da fidelidade da execução do projeto Um dos assuntos mais sensíveis relaciona a conduta do profissional em processos de intervenção em obra existente, já que ocorrerá uma concorrência entre as criações intelectuais. É bastante comum no mercado de trabalho a ocorrência de situações similares, então é fundamental que o trato com a autoria entre os próprios profissionais esteja dentro dos limites impostos pela legislação. O outro ponto importante aponta para o respeito às decisões de projeto, que estão absolutamente atreladas ao processo de criação em todos os seus aspectos, do macro ao micro, do partido arquitetônico ao detalhamento construtivo e especificação de materiais. Nesse aspecto é bom salientar que, por outro viés, a autoria deve se estender responsavelmente também à proteção ambiental, ao respeito à legislação urbana e normas técnicas, à preservação do patrimônio natural e cultural e às boas práticas construtivas. Por isso e por tudo, o autor carrega o bônus do reconhecimento, da notoriedade, da admiração pela sua criação, assim como o ônus de todas as decisões e suas respectivas consequências.

Ao regulamentar a lei 12.378 e seus artigos o CAU teve com uma das suas principais missões elaborar um Código de Ética, específico para os profissionais de Arquitetura e Urbanismo. O CREA já tinha um código, no entanto muito difuso e único para todas as categorias do sistema multiprofissional. Ou seja, não atendia às vicissitudes e necessidades do exercício da profissão para cumprir o seu papel na sociedade. A Resolução 52 de 06 de outubro de 2013 corresponde ao Código de Ética do CAU/BR. O documento traz vários artigos em seus capítulos que respondem à questões de cunho autoral. Os capítulos que tratam das obrigações com os contratantes e com os colegas explicitam situações que correspondem às condutas relacionadas à proteção da autoria e suas responsabilidades. São tratados de assuntos como a posição de autoridade técnica perante o projeto e ao cliente, com postura isenta, imparcial, transparente e de total correção de troca de informações sobre o andamento do projeto. Além disso, aborda também os limites comerciais no espaço competitivo de negócios entre os colegas, principalmente quando se trata do reconhecimento da co-autoria e da mais absoluta repulsa à prática do “canetismo”, ou seja alguém assumir uma autoria fantasiosa e acobertar uma ação de exercício ilegal, e do antigo e reprovável plágio. Existe, inclusive, uma outra resolução, a de número 67, que trata exclusivamente dos direitos de autoria. A Resolução 67 foi aprovada em plenária do CAU/BR em dezembro de 2013, meses após o Código de Ética, tal qual uma sequência lógica para completar o repertório institucional das condutas profissionais. Há uma questão amplamente debatida atualmente que se refere à constatação do plágio. Há uma série de particularidades especificadas na resolução que, no mínimo, seriam questionáveis por serem perfeitamente enquadradas numa práxis projetual bastante rotineira entre os profissionais. O art. 21º considera para fins de constatação de plágio que ocorra pelo menos duas reproduções projetuais concomitantes dentre os seguintes atributos: (1) partido topológico e estrutural; (2) distribuição funcional e (3) forma volumétrica ou espacial, interna ou externa. Ora, basta levantar uma questão de estilo arquitetônico e seus cardápios conceituais, formais e funcionais para gerar uma tremenda dúvida quanto à essa matemática proposta. O assunto é polêmico, mas é pertinente. Dentre os vários debates que se seguiram, foi adotada a postura de que esses itens teriam de ser acompanhados da comprovação de intenção deliberada da cópia quanto aos documentos técnicos ou à própria edificação materializada. Entre outros assuntos de interesse amplo está citada a alteração de projeto original e outro bastante controverso quanto à utilização de projeto ou qualquer produção intelectual para fins publicitários. Quanto a esse assunto, é imprescindível citar que a STJ – Superior Tribunal de Justiça em sua 3ª turma, decidiu em 2016 que o arquiteto tem sim o direito de imagem sobre obra da qual possui a autoria do projeto. A ação foi movida contra uma empresa do ramo de tintas que utilizou uma residência por um arquiteto paulista em publicidade, julgada por ter finalidade lucrativa. É o caso do uso patrimonial da obra sem a devida autorização ou negociação prévia com o autor. Foi uma decisão inédita que configura uma importante vitória dos profissionais de Arquitetura e Urbanismo pela evidente violação dos seus direitos autorais morais e patrimoniais.

Enfim, são inúmeras as vertentes de um tema histórico, que vem sendo motivo de muitos aprofundamentos na medida em que os contextos sócio-econômicos e tecnológicos vão sendo alterados. E, ainda há de ganhar força um aspecto plenamente incorporado à nossa sociedade informacional do século XXI, em que seguramente as coisas sólidas parecem se desmanchar no ar, um tempo do pós-verdades, de fakenews, de descolamento da realidade e de uma relação muito mais imagética e veloz, em contraposição da permanência e da verdade factual com que trabalhamos em nossa profissão. Que venham mais debates, que venham mais argumentos e percepções mais acuradas sobre as recentes transformações que insistem em nos manter alertas na defesa dos direitos do autor, da autoridade ou acreditar que estarão realmente em segundo plano numa nova ordem de produção intelectual contemporânea.

*Referência da foto de capa: Mirror Garden, Shenzhen / China / 2019. (https://www.archilovers.com/projects/252897/gallery?2451038)

Escrito por: Marcus Lima – Membro do Conselho Superior do Instituto de Arquitetos do Brasil (COSU/IAB-DN), professor da Unifor e sócio-diretor da MLMS – Design e Arquitetura.

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