Um teto todo Delas
Como políticas públicas habitacionais podem ser uma política feminista

O planejamento urbano materializa no espaço construído as relações sociais que nele se desenvolvem, portanto, as cidades, reproduzem os sistemas: classista, racista e patriarcal em que vivemos. Assim, percebemos que a vivência da cidade acontece de formas diferentes para homens e mulheres. Para uma mulher sua relação com a moradia e vivência na cidade é qualitativamente diferente das relações e vivências de um homem. Mesmo ganhando condições de mais igualdade no mercado de trabalho, ainda cabe às mulheres o trabalho doméstico e o cuidado das crianças, o chamado trabalho reprodutivo, que contabiliza para elas até triplas jornadas de trabalho. Sobre essa questão MELO e Castilho (2009) pontuam:

“O trabalho doméstico não tem aposentadoria, as mulheres começam muito jovens e nunca deixam de fazê-lo. As mulheres com filhos pequenos acumulam essa atividade com as outras relativas à limpeza, cozinha, lavação. Claro que essas tarefas diminuem quando os(as) filhos(as) crescem e saem de casa, mas permanece a labuta, porque
em cada domicílio ou família há um conjunto de tarefas essenciais à vida das pessoas e que devem ser realizadas por qualquer um dos membros da família. Mas, na maioria dos casos, elas são exercidas pelas mulheres.”

Além disso, de acordo com uma pesquisa salarial do site de empregos Catho (2018), as mulheres possuem renda inferior à masculina em todos os níveis de escolaridade, e são a maioria em empregos precários e informais (IPEA,2010), no entanto, assumem cada vez mais o posto de chefes de família, especialmente nas famílias monoparentais, e por fim, ainda tem menor acesso à propriedade da terra. Todos esses fatores são mais expressivos entre as mulheres negras e periféricas. Contextualizado neste cenário, é essencial analisar a questão das mulheres x moradia (que segundo censo demográfico do IBGE de 2014, chegam a 51,6% da população brasileira) e que apesar de muitos direitos conquistas por políticas de cunho feminista, ainda seguem desconectadas do planejamento urbano, do direito à cidade e moradia, bem como sendo as principais vítimas da violência doméstica e patriarcal.

Analisando o PMCMV sabe-se que ele prioriza mulheres como beneficiárias conforme estabelece o art. 35 da Lei 11977/09: “Os contratos e registros efetivados no âmbito do PMCMV serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher.” Diante disso, procura-se estabelecer os elementos necessários para a compreensão de suas consequências para a emancipação feminina e como um avanço feminista involuntário. Para as mulheres, o direito à habitação ainda está atrelado às condições de opressão e desigualdade mantidos em nosso sistema patriarcal.

Quando uma mulher tem seu acesso à habitação restringido, isso não afeta só a garantia de ter seu direito humano à
moradia desrespeitado, mas também reitera sua posição de subordinação e vulnerabilidade social em função de seu gênero. Ao longo da história a mulher foi destinada e confinada ao espaço doméstico para cumprir seu trabalho reprodutivo, no entanto, durante muito tempo sequer lhe cabia o direito à titularidade da propriedade, ou a posse da terra. Na luta pelos direitos das mulheres à propriedade, houveram avanços e retrocessos, pois ao mesmo tempo em que esses direitos eram conquistados, não eram colocados em prática como deveriam, deixando as mulheres ainda à margem. No Brasil, por muito tempo regimes de herança e de reforma agrária comprometem o acesso das mulheres para obter e/ou manter propriedades no Brasil. O Código Civil brasileiro de 1916, manteve muitos conceitos conservadores que limitavam direitos às mulheres, negando às elas adquirir ou possuir títulos de propriedade, e colocando viúvas como meros depositários de bens para os filhos. Essa realidade foi alterada somente a partir de 1962 com o Estatuto da Mulher Casada e apenas com a constituição de 1988 é que finalmente foram estabelecidos direitos equânimes à propriedade. Assim, garantir o direito das mulheres à habitação é mais do que apenas dar às elas condições materiais para sua autonomia, é também contribuir para uma reparação histórica. Afinal,
garantir o acesso a habitação adequada é condição prioritária ao exercício de muitos dos direitos sociais que são os pilares para a sociedade, e cujo usufruto deveria ser de todos. 

O PMCMV (Programa Minha Casa Minha Vida) foi uma política nacional de habitação lançada em 2009 e que subsidia a aquisição da casa ou apartamento próprio para famílias de baixa renda. Nasceu para tentar suprir o déficit de habitação no Brasil, bem como política econômica para barrar uma crise econômica. Na busca de dados qualitativos sobre o recorte de gênero às beneficiárias mulheres, esbarramos na falta ou insuficiência dos mesmos por parte da Administração Pública. Entretanto, é possível afirmar que o programa incorpora mulheres na política habitacional, quando evidencia que elas estão muitas vezes à frente dos lares brasileiros. Programas como o PMCMV precisam não só garantir o direito à moradia, mas também o direito à cidade. 

A questão habitacional é um dos problemas urbanísticos mais urgentes no Brasil e no mundo. Podemos identificar diversos problemas que derivam dessa questão, com raiz no déficit de habitação, e que se desdobra em assentamentos precários, ocupações de áreas de risco e de proteção ambiental, favelizações, desocupações em ações truculentas, moradores de rua, especulação imobiliária, gentrificação, etc. até chegar em problemáticas complexas e multifatoriais que perpassam por segregação espacial, violência urbana, e aqui fazendo o recorte mais importante sobre a questão feminina: a questão dos feminicídios: sabemos que a maioria dessas mulheres são mortas em ambiente doméstico por companheiros ou ex-companheiros, e o fato dessas mulheres não terem sua própria casa e dependerem financeiramente dos companheiros faz com que se submetam à relacionamentos abusivos que podem resultar nestes feminicídios. Mulheres acuadas em seus próprios lares, violentadas em suas casas. Ter a titularidade da moradia é o que faz toda a diferença nessas situações-limite.

Vivemos no 5º país que mais mata mulheres no mundo, de acordo com o Mapa da Violência de 2015, e segundo a ONU “Nascer menina, define a existência social”, portanto, voltar os olhos à questão das mulheres, é de fundamental importância garantir não apenas moradias, mas lares seguros. Se uma habitação é boa e segura para mulheres, consequentemente será boa e segura para todos, visto que a mulher exerce historicamente o papel de cuidadora e, portanto, está diretamente vinculada ao cuidado das crianças, idosos e portadores de necessidades especiais. Virginia Woolf em um de seus ensaios mais famosos “Um Teto todo seu” pontua que para mulheres alcançarem a mesma liberdade masculina elas precisam de uma fonte de renda e de um teto (a casa própria). Portanto, ao priorizá-las também como maiores beneficiárias, o programa Bolsa Família permitiu que muitas mulheres periféricas tivessem uma fonte de renda fixa, enquanto o Minha Casa Minha Vida permitiu que elas tivessem “um teto todo seu”, contribuindo assim para que mulheres conseguissem sua tão sonhada emancipação. Estes programas não tinham como finalidade a emancipação feminina, mas ao garantir que as mulheres tivessem meios materiais para romper ciclos de violência patriarcal, acabaram por ser tornar uma política feminista. Em seus desdobramentos, podemos inferir que essas políticas podem até reduzir o número de feminicídios, por propiciar maior autonomia às mulheres e possibilidade de libertá-las de ambientes domésticos violentos, estes que antes tinha a titularidade majoritariamente masculina. Isso mostra que relacionar políticas públicas de redistribuição de renda e de habitação nos levam ao enfrentamento de outras problemáticas que estão na base da segregação espacial feminina. Portanto, conclui-se que o PMCMV ao colocar as beneficiárias como prioridade, traz além de uma reparação histórica, a possibilidade de as mulheres escaparem da violência masculina e terem o direito à propriedade assistido. Emancipar mulheres é também contribuir para uma sociedade mais equânime, e, portanto, mais justa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei no 4.121, de 27 de agosto de 1962. Estatuto da Mulher Casada. Dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4121-27-agosto-1962-353846-publicacaooriginal-1-pl.html> acesso em 6 de maio de 2018

BRASIL. Lei n. 6766, de 19 de julho de 1979. Dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6766.htm> acesso em 6 de maio de 2018

BRASIL. Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida — PMCMV e a regularização fundiária de assentamentoslocalizados em áreas urbanas. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm> acesso em 6 de maio de 2018

CATHO. Pesquisa Salarial. 2009 Disponível em: Acesso em: 28 nov.1998.https://www.catho.com.br/salario/action/artigos/As_diferencas_salariais_e ntre_Homens_e_Mulheres.php> acesso em 6 de maio de 2018IBGE– Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de gênero:indicadores sociais das mulheres no Brasil, 2018 Disponível em <https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html?=&t=o- que-e> acesso em 6 de maio de 2018 IBGE– Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 

Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios contínua — PNAD contínua: 1o trimestre de 2017. Disponível em: Acesso em: 5 de maio de 2018. IPEA — Instituto de Pesquisa Econômica aplicada. Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004–2014 Brasília: Ipea, 2010. Disponível em<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article &id=27317> acesso em 5 de maio de 2018

MELO, Hildete Pereira de, e CASTILHO, Marta. Trabalho reprodutivo noBrasil: quem faz? Rev. econ. contemp. [online]. 2009, vol.13, n.1, pp.135–158.Disponível em < http://dx.doi.org/10.1590/S1415-98482009000100006 > acesso em 5 de maio de 2018

Woolf, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Ed. Tordesilhas,2014.

 

Como Citar essa Matéria
PEIXOTO, Ingrid. Um teto todo Delas. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 18 de março de 2020. Arquitetura e Urbanismo. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/um-teto-todo-delas/>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Ingrid Peixoto
Arquiteta e Urbanista
formada pela Universidade Federal do Ceará. Ativista feminista e escritora da Revista virtual QG feminista, se interessa em colocar teoria política feminista dentro da arquitetura e do urbanismo. Media o clube de leitura Leia Feministas que visa politizar mulheres e acessibilizar teoria política. Acredita que tornar cidades seguras para mulheres é torná-las segura para todos, já que o fluxo de crianças, idosos e pessoas com deficiência estão quase sempre intercruzados com os fluxos femininos.

Ingrid Peixoto

formada pela Universidade Federal do Ceará. Ativista feminista e escritora da Revista virtual QG feminista, se interessa em colocar teoria política feminista dentro da arquitetura e do urbanismo. Media o clube de leitura Leia Feministas que visa politizar mulheres e acessibilizar teoria política. Acredita que tornar cidades seguras para mulheres é torná-las segura para todos, já que o fluxo de crianças, idosos e pessoas com deficiência estão quase sempre intercruzados com os fluxos femininos.

One thought on “Um teto todo Delas

  • 18/03/2020 em 11:01 am
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    Achei o texto interessantíssimo, sou estudante de arquitetura e feminista e sempre que busco estudar como posso usar minha profissão e meu conhecimento na luta pela emancipação feminina, só me vem à mente aquele projeto da arquiteta Carina que ensina mulheres a construir sua própria moradia nas periferias. Nunca tinha parado pra refletir que o simples fato de dar a posse da casa do pmcmv para a mulher da família pudesse ser tão significativo. Excelente!

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