Utopias concretas e auto-organização nas periferias Praticando e projetando horizontes de uma vida social para além do capital.
Com o agravamento da pandemia de COVID-19 e seus impactos no sistema-mundo, aliado à mundialização das práticas neoliberais – sistema de exploração e dominação contemporânea assumido pelo capital, em crise desde 2008 – e à sociabilidade baseada na mercantilização da vida, faz-se necessário destacar a potência histórica dos trabalhadores e trabalhadoras na gestação de sociabilidades outras, praticando e projetando horizontes de uma vida social para além do capital e de suas crises sistêmicas, aqui intituladas como utopias concretas.
No Brasil, segundo dados apresentados pela revista Valor Investe, o número de bilionários em 2019 cresce em relação a 2018, indo de 38 para 42, os quais concentram renda equivalente a de 100 milhões de trabalhadores. Paralelamente, com caráter indissociável, segundo dados do censo IBGE 2018, 13.5 milhões de trabalhadores brasileiros encontravam-se em condição de extrema pobreza – vivendo com renda próxima a R$ 145 mensais –, número similar à população total de Portugal. Essas relações simultâneas e desiguais de produção, distribuição e apropriação da riqueza social atuam diretamente na/pela reprodução das cidades, sendo apreendidas a partir da segregação socioespacial, e expressa, por sua vez, na produção das heterogêneas periferias urbanas. Esses fenômenos constituem-se enquanto processos históricos complexos – não cabendo nesta resenha analisá-los em sua totalidade – intrínsecos à urbanização das metrópoles brasileiras.
Desse modo, todas as relações sociais articuladas na reprodução ampliada do capital estão cravadas no bojo de sua própria crise sistêmica, estrutural e desigual de longo prazo, tema bastante desenvolvido por István Mészáros, Carlos Eduardo Martins, entre outros. O que nos interessa especificamente, dado o atual momento histórico, é a ampliação de respostas antissistêmicas à luz das particularidades da formação social brasileira, vislumbrando, finalmente, um horizonte possível que supere essa força socioeconômica autodestrutiva baseada na acumulação infinita, na monopolização dos meios de produção e na contínua exploração e dominação das forças da natureza e do trabalho humano.
Emerge, com isso, um compromisso histórico de curto, médio e longo prazo para promover coletivamente formas sociais antissistêmicas, objetivando a superação da sociabilidade centrada no capital e nas suas formas de exploração e dominação, reivindicadas nesta resenha por meio das u-topias – do grego u, não, topos, lugar – concretas. Logo, concerne distanciar-se do não lugar abstrato concebido por um pequeno corpo de tecnocratas estatais e do lugar homogêneo transformado em mercadoria pelos agentes do capital, mas aproximar-se do lugar heterogêneo concreto das maiorias praticado no presente, bem como do não lugar coletivo dos desejos projetado para o futuro.
Nesse contexto, em Fortaleza, a segregação socioespacial e a expressiva desigualdade quanto à apropriação da riqueza – expressas sobretudo pela espoliação urbana – determinam quais territórios da cidade serão destinados à população pobre: em 2010, o número de favelas totalizava 509. O impacto da pandemia de COVID-19 nas periferias urbanas denuncia o agravamento da realidade socioeconômica, evidente na comparação entre porcentagens quanto à letalidade em territórios distintos. Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, as maiores taxas de letalidade estão localizadas nos bairros Cais do Porto (32%), Granja Lisboa (26%), José Walter (25%), Vicente Pinzon (17,6%) e Barra do Ceará (16%), apesar dos maiores números de casos confirmados estarem no Meireles (246) e na Aldeota (193), com letalidade igual a 3,5% e 2%, respectivamente.
A desigualdade social gritante e a discrepância no direito à saúde mobilizaram inúmeros esforços de moradores locais, entidades não governamentais e outros atores sociais na construção de alternativas possíveis. Em São Paulo, moradores da favela de Paraisópolis, dada a ausência histórica do Estado capitalista na provisão de serviços públicos básicos, elegeram presidentes de rua para gerir redes de solidariedade e doações que circulam seu território. Já no Rio de Janeiro, o Instituto Marielle Franco em parceria com o Favela em Pauta criaram uma plataforma digital para mapear e interconectar diferentes práticas de auto-organização nas periferias urbanas de todo o país em decorrência da pandemia.
Tais ações podem apresentar-se, portanto, como embriões de sociabilidade outras, vislumbradas para além do horizonte de dominação e exploração exercidas pelo capital sobre a reprodução da vida social. Em última instância, as utopias concretas referem-se aos desafios de construir não lugares que se concretizam nas práticas cotidianas periféricas auto-organizativas no presente e no futuro dos trabalhadores brasileiros.
Como Citar essa Matéria
CARCARÁ. Utopias concretas e auto-organização nas periferias. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 20 de maio de 2020. Resenha. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/utopias-concretas-e-auto-organizacao-nas-periferias>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]