A escuta e a participação infantil no planejamento urbano

Etimologicamente, a palavra infância vem do latim, “infantia”, e refere-se àquele que ainda não é capaz de falar. Entretanto, ao analisar os marcos do desenvolvimento humano, segundo Dreyfuss (2005), aos 12 meses o bebê já começa a imitar sons e entre os 2,5 e 3 anos de idade apresenta grandes progressos na comunicação, chegando a alcançar um vocabulário de mais de mil palavras com poucos erros de sintaxe já antes dos 4 anos. 

Para além da análise linguística, nesta discussão, será adotado o conceito presente no artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual considera criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos. Nesta faixa etária, é indiscutível a capacidade de fala de uma criança que segue o desenvolvimento cognitivo saudável, mas então surge a provocação: essas crianças estão sendo verdadeiramente ouvidas?   

O ECA, lançado no ano de 1990, foi um divisor de águas importante nas políticas públicas brasileiras, tendo em vista que a atenção a essa faixa etária já vinha recebendo destaque na escala internacional através de eventos promovidos pela UNICEF e ONU. A partir dele, planos e programas ganharam força em todo o país em setores fundamentais como saúde, educação e segurança. E no âmbito do planejamento urbano, essas crianças estavam sendo ouvidas?

Em 1992, em uma publicação oficial da UNICEF, Roger Hart, co-diretor do Children’s Environments Research Group, apresenta uma didática imagem identificando oito níveis de participação das crianças em processos que envolvem os direitos infantis e deixa claro que só pode ser considerado efetivamente um processo participativo, a partir do nível quatro.

Os níveis de participação, imagem em versão português. Fonte: CECIP, 2020

Como bem aponta o livro O Palhaço e o Psicanalista (Dunker; Thebas, 2019), dominar a arte de saber ouvir o outro é uma habilidade capaz transformar vidas. Mas quando falamos sobre pesquisas que envolvem crianças, dois desafios bem particulares podem ser destacados: a) superar a lógica adultocêntrica e b) a posição ética dos pesquisadores (Muller; Arruda, 2015). Ambos são pontos que merecem um rico aprofundamento teórico que, eventualmente, serão abordados nos próximos artigos. Por hora, ilustro o primeiro item, com o trecho do livro A Criança e a Cidade da arquiteta Mayumi Souza Lima: 

 “(…) o espaço físico isolado do ambiente só existe na cabeça dos adultos para medi-lo, para vendê-lo, para guarda-lo. Para crianças existe o espaço-alegria, o espaço-medo, o espaço-proteção, o espaço- mistério, o espaço-descoberta, enfim, os espaços da liberdade ou da opressão” (LIMA, 1989, p.30)

Finalizo o artigo sem grandes conclusões, mas com o desejo de provocar o aprofundamento das referencias citadas e o questionamento da próxima vez que se deparar com estudos de caso que se auto-intitulam processos colaborativos com crianças. Por fim, ouso dizer que, ao abrir-se para o processo de despertar da criança interior que vive em cada um nós, a compreensão desse tema tende a ser mais rica e, por que não, divertida. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art266>. Acesso em: 30 dez. 2020. 

LIMA, M.S. A Cidade e a Criança. São Paulo: Nobel, 1989.

MULLER, Verônica Regina; ARRUDA, Fabiana Moura. Crianças e pesquisa: da investigação à formação e participação política. Revista Educação e Cultura Contemporânea.  Rejaú/MA, v. 12, n. 29, p. 127-159, maio/ago. 2015.

HART, R. Children’s Participation from tokenism to citizenship. Florence, Italy: UNICEF International Child Development Centre, 1992.

DREYFUSS H.; TILLEY A. As medidas do homem e da mulher. Fatores humanos em design. Porto Alegre: Bookman, 2005. 

Dunker, C.; Thebas, C. O Palhaço e o Psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.  

CECIP, Webinário Criança e Cidade. Youtube. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=wHr6-K_DTkc&t=22s Acesso em: 30 de dez. 2020.

Como Citar essa Matéria
ARAGÃO, Alana. A escuta e a participação infantil no planejamento urbano. Projeto Batente, Fortaleza - CE, 4 de janeiro de 2021. Resenha. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/a-escuta-e-a-participacao-infantil-no-planejamento-urbano/>. Acesso em: [-dia, mês e ano.-]
Alana Aragão
Arquiteta e Urbanista
Alana Aragão acredita no potencial da arte e da educação como ferramentas transformadoras. É graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UNIFOR e é mestranda em planejamento urbano na UFC. Atua como gerente de projeto social no Instituto da Infância.
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Alana Aragão

Alana Aragão acredita no potencial da arte e da educação como ferramentas transformadoras. É graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UNIFOR e é mestranda em planejamento urbano na UFC. Atua como gerente de projeto social no Instituto da Infância.

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