Prisões Urbanas
As Favelas Alencarinas e os Campos de Concentração Cearenses

Imagine que antes do holocausto alemão,
a muitos quilômetros de distância,
já existiam campos de concentração.

Imagine que através de um discurso
de controle higiênico e eugenia 
o retirante de um sertão longínquo
naquela terra sofria.

Imagine que ao invés de acolhimento,

os governantes da época acabaram
causando bastante sofrimento.

Imagine que nesse território fatos horrendos

iriam prosperar, num lugar próximo de todos
nós, nesta terra chamada Ceará.

Renato Oliveira

 

O poema acima expressa o período imediatamente anterior ao surgimento das favelas cearenses. Entre o final do século XIX e o início do século XX, tem início no Ceará um período de grandes secas que assolaram o Estado e, consequentemente, grande parte da população, principalmente a que residia no interior. Em 1915 começa um dos primeiros períodos de estiagem em que milhares de sertanejos são atingidos pela fome e sede no sertão e que encontraram sobrevivência na migração rumo a outros municípios.

Uma das cidades que recebeu bastante imigrante foi Fortaleza. Na época, conhecida como a Fortaleza da “Belle Époque”, a Capital passava por um processo de modernização que vislumbrava atingir o padrão parisiense. A chegada de diversos imigrantes advindos do sertão, os chamados “flagelados”, não foi bem vista, principalmente pela elite comercial, que temia duas grandes ameaças: as doenças e as revoltas.

Retirantes da seca de 1915 na Ponte Metálica de Fortaleza. Fonte: Site Fortaleza Nobre – Acervo Nilson Cruz

Diante dessa situação, o governo tinha que tomar alguma providência. A solução foi incentivar o afastamento dos retirantes do centro da cidade, onde se encontrava a elite cearense. Através de um discurso científico higienista, os imigrantes foram levados ao isolamento para conter a ameaça das doenças e da harmonia da sociedade e, sob tais justificativas, foram criadas experiências de controle social que apontavam ao isolamento em campos de concentração ou “currais”, como eram chamados na época.

Outro discurso que vogou no início do século foi o da eugenia, no qual se caracterizava pelo pensamento de que as classes mais pobres eram inferiores às classes mais ricas. A situação vivida na Capital logo se espalhou por todo país e pelos jornais da época, que noticiavam as altas taxas de mortalidade nos campos de concentração cearenses.

Em Fortaleza existiram duas concentrações principais, o Campo de Concentração do Urubu, que se localizava na região praiana e que compreende hoje ao bairro do Pirambu, e o Campo de Concentração do Matadouro, que se localizava no bairro do Alagadiço, onde hoje se encontra o bairro São Gerardo, a oeste de Fortaleza. Estima-se que em cada campo da capital cearense, projetados para receber até duas mil pessoas, chegaram a se aglomerar aproximadamente 18 mil sertanejos. Diante deste cenário, milhares de retirantes foram dizimados em decorrência das condições insalubres, que causavam doenças, e da alimentação precária.

Matéria de jornal sobre os campos de concentração da época. Fonte: Site Fortaleza Nobre

As favelas em Fortaleza surgem nesse contexto, no início dos anos de 1930, através do grande êxodo rural provocado pelas secas, do agravamento das questões agrárias no interior do Ceará e também da incorporação dos povos indígenas existentes, que à época se dispunham às margens de rios, zonas de praia, ferrovias e indústrias, áreas desprezadas pelos grupos de maior poder aquisitivo.

Nesse período existiu um território chamado Arraial Moura Brasil, uma área pobre e sem urbanização localizada entre as margens dos trilhos e da praia, ocupando um território que se encontrava atrás do cemitério São João Batista e da Estação João Felipe. O local era habitado por imigrantes que ficavam confinados por iniciativa do governo, os chamados “currais”. A partir desse fato histórico surgiam as primeiras favelas alencarinas: Cercado do Zé Padre (1930), Mucuripe (1933), Lagamar (1933), Morro do Ouro (1940), Varjota (1945), Meireles (1950), Papoquinho (1950) e Estrada de Ferro (1954). 

Favela do Pirambu atualmente. Fonte: Google Imagens

Tendo em vista o grande número de imigrantes que se deslocava em direção à capital, o transporte dos “flagelados” advindos do sertão era realizado de forma estratégica, através de linhas férreas que se localizavam próximas a praias, lagoas e indústrias (onde hoje se encontram grande parte das favelas de Fortaleza) e que os levavam direto aos campos de concentração em que iriam ser confinados. 

O fim dos campos de concentração aconteceu através das primeiras chuvas que começaram a surgir no estado em 1933, acompanhadas de uma forte campanha da imprensa para o término dos acercamentos, em que os sertanejos reclamavam o direto de voltar ao sertão. O governo da época distribuiu passagens e sementes para plantio aos imigrantes retornarem ao lugar de origem. Os retirantes que ficaram na capital após as chuvas de 1933 passaram de flagelados a favelados e fundaram, no entorno do Campo do Urubu, a maior favela de Fortaleza até hoje, o grande Pirambu. Considera-se então que os anos de 1932 e 1933 foi um marco na expansão da periferização de Fortaleza.

 

REFERÊNCIAS:

COSTA, Maria Clélia Lustosa. Capítulo da geografia histórica de Fortaleza. 1. ed. Impressa universitária, 2017.

MEIRELLES, Renato; E ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela: a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira. 1. ed. São Paulo: Editora Gente, 2014.

MOTA, Lidiany Soares. Pobreza invisibilizada e resistência: As favelas às magens de trilhos em Fortaleza – CE e a politica de urbanização de área de risco. Tese (mestrado). Faculdade de geografia, Universidade Federal de Pernambuco, 2007

NETO, Cicinato Ferreira. 1915: A história dos sertanejos cearenses no ano da seca. 1. Ed. Fortaleza: Premius, 2015.

RIOS, Kênia Sousa. Isolamento e Poder: Fortaleza e os campos de concentração na Seca de 1932. 1. Ed. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), 2014.

Renato Oliveira
Arquiteto e Urbanista
Graduado em arquitetura e urbanismo pela faculdade Estácio do Ceará e técnico em Orçamento de Obras pela ASTEF/UFC. Tem interesse em temáticas relacionadas à arte em geral, design, engenharia, tecnologia e comunidades periféricas, tendo voltado sua pesquisa de conclusão de curso ao tema urbanização de favelas e produzido artigo científico sobre a formação territorial da favela da Lagoa do Urubu (Fortaleza). Gosta de conversar, ler, observar, escutar bastante música, cinema e descobrir novas formas de se inspirar através dos diversos tipos de arte. Tem como visão de vida a seguinte frase: “os momentos da vida além de serem apreciados, devem ser contemplados.

Renato Oliveira

Graduado em arquitetura e urbanismo pela faculdade Estácio do Ceará e técnico em Orçamento de Obras pela ASTEF/UFC. Tem interesse em temáticas relacionadas à arte em geral, design, engenharia, tecnologia e comunidades periféricas, tendo voltado sua pesquisa de conclusão de curso ao tema urbanização de favelas e produzido artigo científico sobre a formação territorial da favela da Lagoa do Urubu (Fortaleza). Gosta de conversar, ler, observar, escutar bastante música, cinema e descobrir novas formas de se inspirar através dos diversos tipos de arte. Tem como visão de vida a seguinte frase: “os momentos da vida além de serem apreciados, devem ser contemplados.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *